Fry era um pintor britânico. Ou talvez um estudante de pintura apaixonado pela música. Certo é que não será lembrado pelos seus quadros, mas sim pelas suas aguarelas musicais, coloridas por uma folk rusticamente sofisticada. E foi em Itália que as suas oníricas e encantatórias composições foram enaltecidas ao ponto da conservação. Roma viu nascer Dreaming With Alice, disco que lentamente se exportou, como um embrião que cresce em reclusão e se desenvolve de costas voltadas para o mundo. Hoje, é considerado uma pérola da folk psicadélica, daquela que nos faz sonhar em torno do seu sonho.
Disco de remendos e rendilhados, Dreaming With Alice abandona o conceito de tema-título para levar e trazer a canção-base ao longo do seu percurso, em pequenos e evocativos trechos. Como uma linha condutora que nos aproxima de Alice para logo nos afastar dela. O mote não é muito diferente dos artesãos mais celebrados da folk britânica dos finais de 60, como Nick Drake, Roy Harper ou o recentemente (e tristemente) falecido Bert Jansch. As composições são esmagadoramente acústicas, os arranjos bucólicos e pastorais, evocativos de uma Inglaterra preservada no tempo, vasta e verde, imutável na sua essência, impenetrável nos seus bosques sem idade. Mas as canções são mais primaveris que outonais, mais propícias a madrugadas em que o Sol desponta, vermelho, no levante, que a soturnos ocasos outonais ou a ruminações existenciais no frio da noite. Meditações solitárias, mas no conforto da presença imaginada da musa Alice.
Dreaming With Alice - a canção - desdobra-se em oito momentos ao longo do álbum. Cada vez que surge, é como um mergulho lento em águas doces. Uma melodia envolta em sombras, mas que transporta claridade em cada verso. As profundezas da Velha Albion emergem em canções soberbas e suavemente assombradas como The Witch, A Norman Soldier e a evocativa Lute and Flute. Mandolin Man aproxima-se (e bem) dos territórios folk rock de Roy Harper, enquanto que Down Narrow Streets, Song for Wild e a magnífica Roses for Columbus são tatuagens eternas gravadas no coração da folk psicadélica. A terminar, Rethorb Ym No Hcram enfatiza o tom weird do álbum, uma espécie de Tomorrow Never Knows dos Beatles em regime lamento gaélico in reverse. Por vezes, Mark Fry soa a um George Harrison vagueando por rurais paisagens...
Dreaming With Alice - o album - é porto obrigatório para os amantes da folk britânica degenerativa. Um organismo pluricelular cujas marcas podem não ser flagrantes, mas estão presentes naqueles que hoje reinventam a música que nunca foi moda, pois está há muito gravada no nosso ADN. De realçar que Mark Fry lançou recentemente um novo álbum (somente o terceiro em toda a sua carreira - o segundo, Shooting The Moon, data de 2008). Intitula-se I Lived In Trees e, num acesso à Vasco Pulido Valente que me deu agora, espero que seja alvo de verborreia construtiva por parte da crítica especializada. E que Mark Fry esqueça a pintura de vez...