1977 foi o ano em que o punk destronou definitivamente o rock progressivo, criando uma nova ordem musical que relegou quaisquer lampejos sinfónicos para a obscuridade. Mas, se as tendências ditadas no Reino Unido declaravam que era melhor ser Pretty Vacant como os Sex Pistols que ouvir as Wonderous Stories dos Yes (e lá isso é verdade...), o burgo lusitano vivia por esta altura o seu idílio progressivo.
Editado nesse ano, Mistérios e Maravilhas dos Tantra é um dos grandes marcos do género em Portugal. Talvez a medalha de prata num pódio cujo lugar cimeiro é, indubitavelmente, ocupado por José Cid e o superlativo 1000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. As semelhanças entre ambos começam logo pela história de vida (e de carreira artística) dos seus mentores. Se Cid enveredou pelo caminho que todos conhecemos e o bom gosto lamenta, o vocalista dos Tantra não fez a coisa por menos. Era ele Armando Gama, futura lenda da Eurovisão, futura voz das canções da série infantil Sport Billy e futuro autor (com a esposa Valentina Torres - os John Lennon e Yoko Ono nacionais) de um álbum intitulado Tu Tens Outra...
Voltando a falar de arte, o que se encontra no primeiro disco dos Tantra é música bem pensada, bem tocada e de inegável qualidade. Rock progressivo até à medula, puro e duro, sem fugir um milímetro aos clichés do estilo. E um regalo para os seus apreciadores. Épico, fantasista e imaginativo, Mistérios e Maravilhas não envergonha a nação perante obras dos Genesis ou dos Gentle Giant. Mas a sonoridade, sempre atenta aos aspectos melódicos e polvilhada de arabescos, inclina-se mais para Itália e para terras do Sul. À Beira do Fim é um enorme portal colorido a abrir o disco, pleno de variações de tempo e de ambiências contrastantes. Os quatro elementos dos Tantra revelam não ter medo de mostrar o que valem e atiram-se com unhas, dentes e arrojo a uma peça tão labiríntica quanto límpida. O igualmente teclista Armando Gama só se voltará a ouvir no último tema, o iluminado Partir Sempre, em que a conexão rigorosa e intensa baixo/bateria se deixa entrelaçar pela emotividade da voz e o calor da guitarra.
Se o guitarrista Manuel Cardoso carrega nos ombros um instrumento que parece, por vezes, possuir vida própria, a personalidade vincada de Mistérios e Maravilhas deve-se igualmente à inspiração do baterista Tó Zé Almeida, um mestre das baquetas que ajuda a levar o álbum para os meandros da fusão, atirando-se a um furor jazzístico extasiante em Máquina da Felicidade. Mérito igualmente para Américo Luis, que prova não ter feito figura de corpo presente, arrancando um poderoso e viperino riff no complexo e frenético tema-título. Dois curtos interlúdios (Aventuras de um Dragão num Aquário e Variações sobre uma Galáxia), à guitarra acústica e ao piano, refrescam o disco por entre a torrente abrasadora que o arrasta.
O primeiro álbum dos Tantra foi também o único construído por este exemplar quarteto. Pouco tempo depois da sua edição, Armando Gama saiu do grupo, que, entre o culto e o esquecimento, irrompeu em várias encarnações. Mistérios e Maravilhas continua a ser um dos discos mais marcantes da música portuguesa. Hoje soará um pouco datado, é certo, bem como fruto de um atraso atávico do qual Portugal sempre sofreu em relação a novas tendências externas. Mas há 35 anos revelava o brilho cegante da arte liberta da clausura da ditadura. Um documento histórico feito de idealismo musical.