30 de novembro de 2011

Lusofonia VII

António Ferreira parece colocar-nos à vontade quando assina o seu primeiro álbum como Tózé Ferreira. Mas o que se ouve em Música de Baixa Fidelidade é uma quietude inquieta, densidade de sons que evocam uma melancolia negra, pós-industrial. O artista apresenta-se com um diminutivo, mas a sua criação é hiperbólica.
Datado de 1988, Música de Baixa Fidelidade mantém-se como um dos discos mais desconcertantes e fascinantes do panorama contemporâneo português. A sua concepção inicia-se na Holanda, onde Ferreira, então estudante de Sonologia, cria amizade com o texano Rodney Washka II. Dessa frutífera troca de ideias surgiriam as peças More Adult Music e This is Music, as it was Expected, exercícios computorizados que sustentam a récita de dois textos pelo americano. Na primeira, a abstracção sintética, esparsa e atonal funciona como prolongamento das palavras, uma narrativa circular tão surrealista como impenetrável. A segunda assemelha-se a uma pregação apocalíptica, que se arrasta, monocórdica, sobre um escuro e penetrante circuito sonoro, como se as palavras se esgotassem nas máquinas e estas acabassem por prevalecer.
As cinco composições restantes do disco são inteiramente instrumentais. A mão humana é praticamente imperceptível, dado que todas são o resultado de uma complexa equação de computadores, samplagem e sintetizadores. Música programada, em que o computador interage com o criador, ajudando-o no processo, artificialmente intuitivo. Evoca Robert Ashley e faz pensar num Morton Subotnick mais contido. Abraça elementos da musique concrète e projecta harmonias em regime matemático. O Verão Nasceu da Paixão de 1921 brota de processadores melancólicos, criando atmosferas de beleza rara, quase alieníngena. Algumas Pessoas Olharam para Sul e Viram o Deserto é feita de ecos e sopros puramente sintéticos. Máquinas com nervo, que parecem tocar-nos com a ponta dos seus terminais e mostrar-nos o vazio do ciberespaço. Um Som, Seguido de uma Cena Negra e Malva acrescenta um piano de contornos Cageianos e aproximações melódicas à electrónica experimental dominante, mas a frieza cerebral e a ambiência laboratorial nunca lhes cedem terreno.
A Força Silenciosa do Possível e Europa, Depois da Chuva não fizeram parte da edição original em vinil. Foram integradas na versão em CD lançada em 2003, aquela que realmente interessa ter. Apesar de possuírem a mesma genealogia, revelam-se mais ásperas e escuras, invasivas de desolação electroacústica. São o exemplo perfeito da baixa fidelidade e da sua estranheza soturna e desapegada.
Música de Baixa Fidelidade varia entre o estudo académico das possibilidades dos computadores como órgãos reprodutivos de música e o próprio acto de experimentar a criação. O seu eco ressoa pela electrónica periférica de muitos projectos actuais, quer dentro, quer fora de portas, mas não há amor como o primeiro e a paixão de António Ferreira revelou-se tão exploratória quanto assolapada.