23 de junho de 2012

Silêncio de Ouro

Durante a criação de Structures from Silence, o seu balsâmico disco de 1984, Steve Roach viveu imerso na música que dele brotava. A tecnologia da época permitia já que o som percorresse infinitamente o espaço através das possibilidades de um computador, tornando-se assim algo que confrontava o próprio compositor, ao invés de partir apenas  do seu âmago.
Esse bifurcado espelho criativo constante deu origem a uma depuração quase extrema da música, fazendo de Structures from Silence uma escultura sónica que tanto tem de ambiental como de estimulante. Não entorpece a mente, mantém-na desperta e aberta. As melodias intra-uterinas inspiram e expiram. Céus estrelados, auroras, ocasos, nuvens que passam, folhas que se agitam, tudo são estruturas que sustentam o silêncio. E quando estas se desmoronam, só o silêncio, inexorável, prevalece. A música é minimal, mas transumante, baseia-se nas livres travessias da cosmicidade e permite que um californiano levite e vagueie pelo espaço amparado pelas muletas da escola electrónica alemã e do catedrático Brian Eno.
Não existem grandes diferenças nem variações no desenrolar de Reflections in Suspension, Quiet Friend e Structures from Silence. São três faces complementares da mesma pirâmide. A última destaca-se pela audácia da duração - quase 30 minutos - e pelo poder indutor de relaxamento e introspecção. O espaço parece estático, no entanto, move-se. Assim é esta peça inigualável, um imenso patchwork de calma esmagadora e revigorante abstracção.
Structures from Silence é uma das melhores obras de sempre da chamada música ambiental. Ombreia facilmente com clássicos como Zeit dos Tangerine Dream ou Music for Airports do supracitado Eno. Tal como estes, deixa-nos confortáveis na solidão e convida à meditação. Mais que tudo, não nos afoga em misantropia, é um grande disco terapêutico. Um disco sem tempo.

22 de junho de 2012

Big MEC



Escrítica Pop foi compilado a partir de crónicas elaboradas entre 1980 e 1982 para a imprensa (Se7e e O Jornal) e para a rádio (o saudoso Café-Concerto da Comercial). É um livro de Miguel Esteves Cardoso e uma das obras de referência, não só do jornalismo musical português, mas da própria escrita lusa dedicada à arte das musas.
Escritos entre Portugal e Inglaterra, estes textos debruçam-se, obviamente, sobre a música e a cultura pop de cá e de lá. É evidente o apreço do autor por grandes nomes que, na altura, davam os primeiros passos no milieu, como UB40 (sim, eles já foram bons), James "Blood" Ulmer ou Depeche Mode. Igualmente notória é a aversão ao metal ou aos neo-românticos (carinhosamente definidos por MEC como rock-cabeleireiro). Intocáveis são apenas os Joy Division, o que se compreende pela escolha da capa para o livro. E tão bem são eles tratados pela pena do escriba. E que nos resta senão concordar com tudo e ir ouvir os discos outra vez...
As tendências e trejeitos de escrita a que MEC nos habituou encontram já terra firme em Escrítica Pop. A ironia, irreverência e inteligência da prosa estão bem patentes ao longo do livro. É certo que muitas das coisas que o autor gaba se estragaram com o tempo, da mesma forma que alguns dos desancados se tornaram entidades criticamente respeitáveis. Mas MEC assume isso com a naturalidade e franqueza que todos deveríamos ter quando bebemos do caldo imenso e efémero da música popular: "É claro que  já não gosto de nenhuma das bandas das quais disse gostar muito, e que vim a apreciar todas as outras que jurei odiar até à morte", diz-nos o futuro criador d' O Amor é Fodido no prefácio da obra. Ao desbravar novamente as páginas do histórico Escrítica Pop, quem não sentirá o mesmo? E a capacidade de fazer soltar gargalhadas inteligentes aos melómanos de rigueur ainda lá está guardada...

Troika-Tintas

Corre o Euro 2012 e aqui o burgo está apurado e satisfeito. Algumas das inesquecíveis alegrias da minha vida foram proporcionadas pelo futebol, logo comungo do mesmo sentimento. Pode ser alegórico, mas o confronto futebolístico de hoje entre Grécia e Alemanha não deixa de se revestir de outras conotações. David e Golias, oprimido e opressor, medem forças simbolicamente, de igual para igual, num palco onde tudo é possível. Boa altura para ver, ou rever, Catastroika. Lançado há poucos meses pelos mesmos criadores do igualmente pungente Dividocracia, este documentário centra-se nos danos económicos e sociais inflingidos pela privatização usurária e consentida de serviços públicos. Disponibilizado gratuitamente na Internet, tal como o seu antecessor, é igualmente imperdível. Foi produzido pelo público, destina-se ao público e conta com a participação de ilustres cidadãos como o escritor Luis Sepúlveda ou o cineasta Ken Loach. Catastroika elucida, denuncia e ordena o caos que, comummente, se define como crise. Felizmente ainda há gente que nos resgata das trevas, nos põe a pensar e nos desafia a agir, sem sectarismos...

20 de junho de 2012

New York Beat

Em 1981, existia outra Nova York. Pulsante, vibrante, latejante de liberdade artística e criativa. Não que a metrópole dos dias de hoje tenha perdido a sua energia única, mas perdeu-se a maior parte da perigosa mas saudável selvajaria urbana dos tempos que antecederam as purgas do mayor Rudy Giuliani. Hoje, Nova York é mais asséptica, segura, luminosa. Mas a nostalgia aperta sempre que a memória recupera os tempos de loucura desbragada, em que ser artista na Big Apple era sinónimo de um estilo de vida fora das convenções.
Downtown 81, película rodada em 1981 mas apenas estreada oficialmente no ano 2000, capta na perfeição o zeitgeist da cidade nessa época. São os tempos do advento do pós-punk e da consolidação da mui nova-iorquina No Wave. Esta última, uma cena artística vanguardista e provocadora que englobava música, cinema e arte urbana e contemporânea, levou aos píncaros o extremismo libertário da experimentação e da inovação.
A narrativa pouco convencional do filme centra-se, acima de tudo, nas aventuras e desventuras em tempo real do jovem artista plástico Jean-Michel Basquiat. Protótipo por essência do artista urbano e underground, Basquiat viveu depressa e morreu jovem - aos 27 anos (mais um membro do Clube dos 27), preso nas malhas da heroína. A sua obra, composta por quadros e autênticos frescos urbanos, que vão do graffiti à simples inscrição de textos nos muros da cidade, foi revolucionária e radical. Ele foi o Andy Warhol das ruas, sem dinheiro, sem abrigo e sem glamour, vendendo quadros para comer, engatando miúdas nos bares para ter onde dormir. A realidade de Basquiat é confabulada em Downtown 81. Enquanto vagueia pelas ruas e bares e se cruza com diferentes e bizarras personagens, é traçado um retrato paralelo da cena artística do Lower East Side de Manhattan. Actuações de nomes incontornáveis da cena musical nova-iorquina como James White and the Blacks, Suicide ou Kid Creole and the Coconuts abrilhantam o filme, que é igualmente colorido por aparições surreais de Debbie Harry e Arto Lindsay.
Para além de ser uma mitologia da vida real do artista desalinhado, Downtown 81 é igualmente o postal ilustrado de um tempo e de uma cidade que já não existem. De dias mais escuros mas ideias mais límpidas. Um site dedicado a esta obra de culto marginal pode ser consultado aqui.

18 de junho de 2012

Sopro na Alma

No final dos anos 60 do século XX, o jazz continuava a afastar-se progressivamente da sua primordial função de dança e entretenga. Os conflitos raciais na América e a porta cada vez mais escancarada ao acolhimento de novas influências, transformaram este género, negro na sua essência, em porta-estandarte de comunicação e reivindicação. Elementos espirituais e atávicos começaram a ser cada vez mais resgatados e a música tornou-se uma arte vanguardista, uma linguagem onde a religiosidade oriental e o retorno à Africa-Mãe para inspiração deram origem a cerimónias tão incendiárias quanto arrebatadoras. Karma, o terceiro álbum como líder do enorme saxofonista Pharoah Sanders é uma dessas distintas cerimónias. Dotado de uns pulmões sobrenaturais, este excepcional músico celebrizou-se, igualmente, por espalhar energia e alma em parcerias com John Coltrane e sua esposa Alice, entre outras luminárias do jazz mais avant-garde. Na obra em epígrafe, datada de 1969 e referência maior no honorável catálogo da lendária editora Impulse!, Sanders erege um monumento imponente e grave, mas igualmente libertador. Um monolito sónico dividido em duas partes, The Creator Has a Master Plan e Colors. A primeira peça, define, desde logo, o disco. Uma odisseia sobrenatural de 32 minutos de duração, que começa como franca reverência ao imortal John Coltrane de A Love Supreme e termina numa prece enlevada de saxofone e voz. Entre o princípio e o fim, uma miríade de variações sobre um tema, que assenta num groove em constante voragem. O elemento estranho mas absorvente é a voz de Leon Thomas, que se espraia entre o mantra hipnótico e transcendentes ululações. E o belíssimo fio de melodia que prende todo o tema estica até ao limite sem nunca se partir, desdobrando-se em infinitas camadas que vão da paz à exultação. Sem dúvida alguma, esta é uma das mais geniais composições de sempre nos anais do free jazz.
Talvez seja redundante afirmar que Colors nos invade o espírito com uma paleta de cores, mas não existe melhor forma de a descrever. O poder da voz de Leon Thomas é irresistível e o que fica quando a música magnífica se desvanece é a sensação que a nossa alma foi lavada e uma paz luminosa se apoderou de nós. Karma é um verdadeiro bálsamo musical, destinado a aplicação interna, sem contra-indicações nem perigo de sobredosagem.

12 de junho de 2012

Erário Etéreo

Em 1984, por entre dejectos e eflúvios de música pastilha elástica, foi enterrado um tesouro. Ao terceiro álbum, os Cocteau Twins (agora expandidos a trio com a inclusão do baixista Simon Raymonde) roubaram um pedaço de céu para nos oferecer. Garlands, o primeiro álbum, foi um produto de influências, um disco escuro e denso, esforçado mas sem conseguir afastar os fantasmas ominosos de Siouxsie & The Banshees ou dos Cure da época. Um ano depois, em 1983, chega Head Over Heels, obra que oscila entre a filigrana e o tonitruante. Começa a ser impossível acreditar que a voz de Elisabeth Fraser é real e a guitarra de Robin Guthrie embala-nos pela bruma montados em algodão doce. Começa a ser incubada alguma da música mais bela que este planeta já ouviu. Mas é o mesmérico Treasure que arrebata em definitivo. Simon Raymonde prova ser um elemento catalisador na expansão onírica do som dos Cocteau Twins. Caímos, deliciosamente prostrados, em levitantes e envolventes lençóis de som. As ambiências, etéreas e irreais, penetram com delicadeza as áreas de prazer do nosso cérebro. Ainda perdura algum do rigor gótico, das atmosferas austeras que encetaram um saudável concubinato com a luz e a cor na fabulosa série de EP's que antecede Treasure (Sunburst and Snowblind, Pearly-Dewdrops' Drops, The Spanglemaker). Beatrix e Persephone são exemplos dessa junção, doces melodias cobertas de nuvens negras, arcaísmos futuristas. Lorelei é a pop perfeita do mundo dos anjos, com Liz Fraser nos píncaros das acrobacias espectrais da sua voz. Não é à toa que um extasiado crítico britânico chegou a apelidá-la "the voice of God"...
Todas as canções têm nomes de pessoas, como se fossem elas o verdadeiro tesouro, e cada uma a sua própria individualidade. A viagem pelo sonho atravessa diferentes territórios, do mutismo minimal de Otterley ao rebentamento das ondas cintilantes de Donimo. Robin Guthrie transforma a guitarra numa varinha de condão, distorcendo-a e adornando-a de efeitos espantosos. Não importa a técnica, apenas a sensação inflingida. Aloysius, Cicely, Ivo (esta última dedicada ao patrão da 4AD, Ivo Watts-Russell), todas são pequenas delícias num jardim edénico. E o auge acontece em Pandora, onde a beatitude sonial entra em simbiose com a sensualidade carnal, numa peça sublime que tanto pode ser veículo de paixão como de meditação. Não percebemos patavina do que Fraser está a cantar, mas isso é de somenos importância. Treasure é um disco do coração e não da razão, a mais equilibrada e perfeita prova das capacidades dos Cocteau Twins. Com tantos discos a roçar a perfeição, é discutível se esta é ou não a obra-prima da banda britânica. Foi a primeira que ouvi e continua a ser a minha preferida. O resto é como discutir o sexo dos anjos...

5 de junho de 2012

Life of Bryan

A carreira a solo de Bryan Ferry é algo paradoxal. Granjeou-lhe um estável sucesso comercial, mas nem sempre os mimos da crítica. Arriscando progressivamente menos que nos tempos dos Roxy Music, Ferry começou por viver uma vida dupla discográfica para exercer em pleno o seu poder criativo. Não é difícil lembrarmo-nos da outra força motriz dessa banda britânica nos inícios dos anos 70: Brian Eno, personagem excentricamente vestida de penas e lantejoulas, qual extraterrestre que desceu aos humanos para mostrar o futuro do rock. A fricção entre o extremamente arrojado Eno e o mais refreado Ferry durou dois álbuns. Eno acabou por ejectar-se da nave, que continuou um rumo interessante, mas progressivamente polido. Ferry tornou-se o crooner de românticos utópicos, de yuppies com cérebro e de socialistas do champagne.
No meio de bons momentos e de outros menos inspirados, é difícil apontar um disco de referência do cantor inglês. Parte da sua obra é feita de versões (These Foolish Things, As Time Goes By) e os álbuns de originais nem sempre nos conseguem abarbatar (The Bride Stripped Bare, Mamouna). Ferry sempre foi um homem de singles, de pontuais grandes canções. Em termos de longa-durações, o ponto mais coeso e próximo da perfeição na sua discografia será, porventura, Bête Noire. Sucessor do celebradíssimo Boys and Girls, este registo de 1987 tem tudo aquilo que procuramos em Ferry (clacissismo, sofisticação e drama q.b.), para além de ser o seu disco mais nocturno e cinemático. Tudo sem perder os característicos elementos enérgicos e dançáveis. Kiss and Tell, Limbo e The Right Stuff (esta última a aproveitar-se bem da guitarra de um Johnny Marr ainda fresquinho dos Smiths) entram de imediato para o panteão das canções melhor sucedidas da cartilha ferryana. New Town e Seven Deadly Sins movimentam-se pela noite urbana, que começa com desejos profanos e termina com marcas de batôn no colarinho. O tema-título e Zamba são os melhores momentos do álbum. O primeiro, envolto em inflexões afrancesadas, conjura uma boémia decadente, um filme negro que poderia decorrer em Montmartre. Zamba enfeita-se de negrume atmosférico e vampírico, corrompendo-nos suavemente até nos abandonarmos com ela nas sombras.
Trabalhos mais recentes de Bryan Ferry, como Frantic ou Olympia, resgataram para a actualidade uma carreira que aparentava ser já um atavismo, trazendo com eles a participação esporádica de velhos cúmplices dos Roxy Music, como Eno ou Phil Manzanera. Ferry continua a ser referência e a merecer reverência. Regressar a Bête Noire é apanhá-lo em flagrante na imagem que ele próprio criou. Estilizada, vintage, requintada.