30 de julho de 2011

Kosmische Kosmetik XXVII

Conrad Schnitzler tem 74 anos de idade e quase o dobro de discos editados. Este alemão de Düsseldorf, desconhecido para muitos, é um dos maiores pioneiros da música electrónica. Membro da primeira formação dos Tangerine Dream e co-fundador dos Kluster (que trocariam o K pelo C após a sua saída), Schnitzler foi igualmente o mentor do breve projecto Eruption, que duraria o tempo suficiente para gerar um único álbum. Enquanto os Eruption seriam uma alavanca para o movimento krautrock, esse único registo - homónimo - apenas veria a luz do dia em 2006, mais de 30 anos após a sua criação.
Muito viveu e produziu Conrad Schnitzler entretanto. A sua quase infinita discografia necessita de uma hercúlea dedicação para ser desbravada por inteiro. A trajectória do músico parece ser circular desde os primeiros tempos da sua carreira a solo. Começando por assentar em edições exclusivamente em cassette, até aos dias de hoje, em que perduram as concepções caseiras e disseminadas em CD-R, Herr Schnitzler conviveu pouco tempo com a visibilidade mediática. Talvez o excelente Ballet Statique, de 1978, seja visto hoje como a sua obra mais abrangente e influente, um dos melhores discos de electrónica já criados e uma bússola para muitos artífices e seguidores do clássico, frio e minimal som germânico. Cinco anos antes, porém, surgia outro mastodonte robótico pela mão do catedrático. Longe, muito longe, das atmosferas mais acessíveis presentes nos seus discos de finais de 70 e princípios de 80, a aventura chama-se Zug.
A história de Zug escreve-se em dois temas apenas, ou, como nestes tempos havia dois lados nas construções musicais, numa peça partida em dois: Spur e Rhythmus. Causa e consequência. Desde o início somos colocados numa locomotiva desgovernada, que avança irredutivelmente, mas sem nunca sair dos carris. Uma vertigem sonora, que não pára em estações nem apeadeiros e que tanto nos pede para mover o corpo às suas investidas, como nos titila a massa encefálica para continuar a ouvir, para saber onde a viagem nos leva. O ritmo pica como esporas, impedindo a atenção de ser desviada, mesmo sendo minimal e repetitivo. Lá atrás sucedem-se sibilares mecânicos, metálicos, metamorfoses subtis que acrescentam tonalidades cinzentas ao preto e branco dominante. Em Trans-Europe Express dos Kraftwerk, sentimo-nos igualmente transportados, mas como passageiros enamorados pelo Velho Continente. Zug é mais actual, parece arrastar-nos para uma fuga, não nos deixa olhar a paisagem, não nos deixa reter o momento. É movimento puro, o que acontecerá daqui a um minuto poderá ser exactamente o que aconteceu há um minuto atrás. Abruptamente, como se entrasse num túnel perpétuo, o movimento desvanece-se. Passaram perto de 40 minutos. De quê?
Em 2010, o disco foi reeditado tendo como base reconstruções da peça original. Provavelmente para dar continuidade, um fim, ou um sentido a uma obra tão vaga e misteriosa mas que ajudou a construir o futuro. O primeiro disco de trance music de sempre? O motor de arranque do techno inteligente? Nada disso, mas muito mais que isso...

African Night Flight

Imagine-se uma noite em que a escuridão subjuga e o calor entorpece. Uma noite em que é impossível dormir, mas em que os movimentos do corpo são forçados a minima. Uma noite opiácea, em que os espíritos vagueiam sonambulamente fora dos corpos e os sentidos não distinguem luzes reais de sombras irreais. Fourth World, Vol. 1: Possible Musics, colaboração entre o trompetista de vanguarda Jon Hassell e o mestre das ambiências Brian Eno é música em transe profundo, um delírio hipnótico e fantasmagórico. Parece conjurar danças tribais perdidas no tempo, ecos de ritos passados que regressam, possessos. Seduz-nos a segui-lo a paragens onde mortos e vivos se encontram. Onde o visionário e o arcano coabitam.
Este ritual mágico e soberbo estende-se ao longo de seis temas, praticamente indistinguíveis entre si, mas subtilmente impregnados de nuances e atmosferas que agem sobre o ouvinte como magia negra. O bruxo supremo é, naturalmente, o distinto trompete trabalhado de Jon Hassell. Os sons que derrama parece não pertencerem a este mundo e irrigam a música como uma espécie de om meditativo. Como pano de fundo, residem as texturas de Brian Eno. Emergem as paisagens oníricas de monolitos como Another Green World e a abstracção contemplativa das suas tríades com Roedelius e Moebius.
O termo Fourth World significava, para Hassell, a junção entre o vanguardismo musical e diferentes culturas e eras. Uma miríade de possibilidades, que assistem este disco em pleno e que reflectem África como um espelho negro. Delta Rain Dream recupera os tambores reais do Burundi, em regime processional e introvertido. Ritualística, Griot (Over 'Contagious Magic') faz das palmas ritmo e Rising Thermal 14° 16' N; 32° 28' E deixa-nos sós perante a claustrofobia da imensidão. Hassell vai fazendo o trompete carpir como uma alma penada ou uivar como um animal selvagem.
A metade mais forte do álbum começa no primeiro tema, Chemistry. A química entre os intervenientes mostra-se, desde logo, perfeita. Trompete sussurrante, um baixo com Parkinson e o percurssionista brasileiro Naná Vasconcelos a acariciar as congas. Ba-Benzélé coloca um Hassell em loop intermitente (inebriante) e outro em desdobramento. Ouvem-se trovões à distância e o ritmo dança seduzindo o céu com a promessa de chuva. Eno mantém-se em segundo plano, adicionando sintetizadores e efeitos, dando tempero. Ambos deixam o melhor para o fim. Charm (Over 'Burundi Cloud') é a peça que define este disco magistral. Durando mais de 20 minutos (o que correspondia a todo o lado B do vinil original), é daqueles temas em que vale a pena ter nascido para poder experienciá-lo. Está lá tudo o que melhor define as artes de Hassell e Eno. O trompete parece um ser vivo, que não só comunica com a nossa alma, como nos toca fisicamente. As electrónicas giram em espirais contínuas e tudo se repete, uma vez, outra vez, até que o solo deixa de existir e estamos a voar lentamente pela noite infinita. Lá em baixo, flora negra, águas paradas, fogo que se eleva mas não nos consegue alcançar. O ritmo conduz-nos, continente acima, até terras do Magrebe, até sabe-se lá onde, porque há coisas das Arábias...
Fourth World, Vol. 1: Possible Musics assumiu-se como uma obra embrionária no que viria a ser o multiculturalismo musical, especialmente na música electrónica e de dança. Uma obra que é mais Hassell que Eno, mas cuja existência seria impossível se os dois não tivessem marcado encontro e traçado o mesmo destino.

27 de julho de 2011

Beef do Vazio


Unconditionally Guaranteed e Bluejeans & Moonbeams são tidos como os pontos mais baixos da obra de Captain Beefheart. Erros de percurso em que o experimentalismo cedeu ao comercialismo, em que os fãs antigos se sentiram defraudados e em que os fãs novos... bem, quais fãs novos?
Ambos estes discos de 1974 quase arruinavam a reputação de Don Van Vliet ao mesmo tempo que não lhe permitiram transpor o portal que dá acesso ao sucesso massificado (se era mesmo isso o pretendido). A emblemática Magic Band, que o acompanhava desde os primórdios, chegou a ser apelidada Tragic Band. Beefheart portava-se quase normalmente na televisão (ver vídeo no final). Que aberrações eram estas!?
Hoje, quase 40 anos passados da sua edição, será que estas obras continuam a ser malditas? O Escrito no Som, imbuído do seu espírito de harmonia e apaziguamento, coloca-os na mesa de operações.


Para começar, Unconditionally Guaranteed mostra na capa Captain Beefheart agarrado a um maço de dólares. Das duas uma: ou este gesto faz parte da sua ironia habitual, ostentando que fez um disco somente pelo dinheiro, ou então fez mesmo um disco somente pelo dinheiro. Outra coisa é o facto de Beefheart estar, por estes dias, apaixonado e recém-casado com a senhora Jan Van Vliet. Em circunstâncias normais, isto é motivo de júbilo. Para um artista como este, é um pesadelo. Ouvir o homem que criou uma das obras musicais mais surrealistas e abismais do século XX (Trout Mask Replica, obviamente) a cantar algo como Happy Love Song é como beber óleo de fígado de bacalhau puro. Por entre a tepidez geral e constante, há algumas canções que sobressaem e se insinuam num estranho chove não molha. This is the Day e Magic Be são pérolas incaracterísticas. Certamente seriam apreciadas noutro personagem que não Captain Beefheart, o que suscita o interessante debate de como os artistas ficam involuntariamente presos aos rótulos - sejam eles bons ou maus. I Got Love on my Mind é um blues-rock enérgico, mas que nunca infringe a lei. Apenas Upon the My-O-My traz ténues reminiscências do passado mais experimental e transgressor. Os restantes temas enchem chouriços na perfeição. A frase 100% Pure and Gold, inscrita na capa do álbum, só pode gozar literalmente com o ouvinte. 25% seria a percentagem correcta.


Bluejeans & Moonbeams começa melhor que o seu predecessor. Party of Special Things to Do avança com algum do veneno vocal e rítmico que os beefheartianos tanto adoram. Logo a seguir, o tratamento dado a Same Old Blues supera o original de J.J. Cale. Não profana os blues tanto como seria desejável, mas mantém a decência. E eis que surge Observatory Crest para salvar em definitivo a honra do convento. Nos meandros da atmosfera ofuscante, de um estio abrasador, palpita um psicadelismo puro e acessível que não se conhecia no Capitão desde Safe as Milk. Infelizmente, o combóio descarrila a partir daqui. Nenhuma das peças seguintes supera o que ficou para trás e somente Further Than We've Gone e o tema-título conseguem deixar algo de memorável. Nem que seja pela impressão que esta encarnação da Magic Band está a emular o rock progressivo ou as paisagens mais açucaradas da música dos anos 70. Em mais nenhuma fase de Beefheart se conseguem escutar solos de guitarra planantes ou teclados com priapismo...

Até hoje, é difícil descortinar se Don Van Vliet agiu deliberadamente na criação destes dois registos ou se foi coagido para tal. Há quem culpe a falta de carisma da banda ou o facilitismo na produção de Andy DiMartino. Certo é que não se ouviu falar em Captain Beefheart nos quatro anos que se seguiram. Mas a fera que parecia dopada e à beira de cair no abismo do mainstream regressaria para nos presentear com mais três discos até à sua retirada final em 1982. Três discos à (sua) moda antiga, desafiantes, intrigantes, imprescindíveis.
Mesmo assim, não existem razões para obliterar totalmente Unconditionally Guaranteed e Bluejeans & Moonbeams. Com a mediocridade criativa facilmente audível que prolifera por aí, é provável que alguns músicos doassem um rim para os fazer. Aqui foram a excelência previamente alcançada e a fasquia muito alta que tramaram Don Van Vliet. Voltar a estes discos de quando em vez não provoca micoses. Mas que nunca sejam glorificados. Isso seria como ver-me a festejar um golo do FC Porto, ou a comer sardinhas assadas com Coca-Cola. Nunca se sabe se poderá vir a acontecer, mas é extremamente improvável...

12 de julho de 2011

West Coast Blues

Dennis Wilson sempre foi o menos conhecido dos manos Wilson e o menos proeminente dos Beach Boys. No entanto, era o único verdadeiro surfista de uma banda pivotal na cultura do surf. Este é um dos muitos paradoxos da vida pessoal e musical do baterista dos ícones californianos. Foi o mesmo rapaz sorridente que apresentou Charles Manson ao mundo da música; foi o surfista ideal, apaixonado pelo oceano e que nele mergulhou embriagado pondo termo à vida; foi parte de um conjunto detentor das mais celebradas harmonias vocais e terminou a carreira com a voz devastada por álcool & nicotina. Live fast, die young é um lugar-comum do rock'n'roll. Live like you want, die almost young podia ser a sua adaptação a Dennis Wilson. A única obra que editou a solo mostra que praticava aquilo que pregava: Pacific Ocean Blue, de 1977, é o clássico definitivo nas carreiras a solo dos membros dos Beach Boys, sendo apenas superado pela conclusão magnânima de Smile assinada pelo irmão Brian.
O que fica quando Pacific Ocean Blue se evapora é a certeza do grande escritor de canções que deixou tanto por deslumbrar. É o disco da Califórnia como Terra Prometida eternamente banhada pelo Sol, do oceano impossivelmente azul, das intermináveis noites de Verão na praia. É igualmente a reflexão de um homem que viveu o paraíso e o inferno dos excessos, de um homem que possui uma relação simbiótica com o mar e que degusta demasiado a vida para a deixar tornar-se sensaborona.
São canções enormes, as de Pacific Ocean Blue. O título não poderia ser outro para a música aconchegante e luxuriante que lá está guardada. Para trás, muito para trás, estão as pranchas de surf com acne dos Beach Boys. Dennis Wilson senta-se agora ao piano, faz pontual uso de arranjos orquestrais e a sua voz, trôpega mas sentida, torna as canções ainda mais penetrantes. A abertura com River Song mostra desde logo o que nos espera: um início solarengo, vozes a arranhar o gospel e nuvens em forma de piano a cobrirem o sol perto do final. Poucos são os choques frontais com o rock neste disco, ele é mais um efeito colateral que se manifesta em sólidos temas como Friday Night, What's Wrong ou Pacific Ocean Blue. Dreamer é blue-eyed-soul que surge na calada da noite a pedir para nos portarmos mal. Rainbows foi feita para nos aclarar a alma. Mas são as baladas o prato forte deste registo. É nelas que reside o oceano, luminescente em You and I Thoughts of You, interminável escuridão líquida em Time e no belíssimo Moonshine. Farewell My Friend torna-se arrepiante, sendo que foi a elegia que Wilson escreveu para si próprio e que se fez soar no seu funeral. E o final não poderia ser mais perfeito, com o magnífico End of the Show a ver um gigantesco sol vermelho a afundar-se no horizonte, a voz quebrada de Wilson a levantar-se em agradecimento, quando somos nós que temos que agradecer.
Em 2008, Pacific Ocean Blue foi alvo de edição deluxe, que inclui as míticas Bambu Sessions - sessões que dariam origem a um segundo álbum nunca editado, logicamente intitulado Bambu. Este dois em um é absolutamente imprescindível, dado que esta jóia perdida aproxima-se bastante do brilho ofuscante do tesouro que a antecedeu. It's Not Too Late, Cocktails ou Love Surrounds Me cimentam ainda mais a imagem de Dennis Wilson como bardo californiano, o crooner surfista. É bom sentir o Pacífico aqui tão perto e poder contemplá-lo fechando os olhos e abrindo os ouvidos. Aproveitem o Verão enquanto dura.

Dinosaur Sr.

Insuflado, pomposo, mal-amado. Eis o rock progressivo em todo o seu esplendor. De música revolucionária a revolução que esqueceu a música, do underground aos aviões a jacto, Prog Rock Britannia conta (quase) tudo. Sejamos fãs ou detractores, este documentário da BBC sobre a génese, ascensão e queda deste polémico estilo musical está muitíssimo bem conseguido. O rigor e a minúcia associados aos testemunhos dos intervenientes tornam-no fundamental para a compreensão deste nicho da história musical do século passado. Now lose yourself in Prog...

11 de julho de 2011

Kosmische Kosmetik XXVI

Here comes the big wave of aggression! Assim se ergue, por entre ventania e ondas, o primeiro álbum dos Gila - homónimo, mas igualmente conhecido como Free Electric Sound. Poderoso e esmagador, é uma das obras-primas da primeira vaga do krautrock, a mais selvagem e mentalmente intrusiva. Sob o látego impiedoso de guitarras à deriva e ritmos assertivos, caímos subjugados pela força de um disco enorme, um tsunami eléctrico.
Será que as quatro mentes que conceberam este portento em 1971 estavam cientes do que faziam? Que acabavam de criar um portal sonoro para uma dimensão de mistérios e maravilhas? O som que debitam é expansivo e imenso, flutuante e majestoso como oceanos de estrelas. Aggression, o primeiro tema, irrompe sem aviso, atacando sem cerimónias e por todos os flancos, com guitarras que dançam em transe e teclados que silvam como almas a quererem sair do corpo. O prodigioso Kommunication materializa-se em seguida e ganha forma de gigante à medida que abandona as sombras em direcção à luz. Guitarra e mellotron acasalam lenta e deliciosamente, a voz de Conny Veit sopra fugazmente do nada e, quando damos conta, já não há escapatória possível da teia entorpecente e engenhosamente arquitectada. Esta é, sem dúvida alguma, uma das mais suculentas confecções saídas da panela do rock alemão na primeira metade dos anos setenta.
Kollaps acentua o ambiente místico e encantatório. Os instrumentos parecem pairar na irrealidade, um bebé chora, a música tacteia na escuridão. Tudo muitíssimo bem conseguido, com espírito, sem artifícios. Um tímido, contido, mas muito belo exercício acústico, surge na peça seguinte, Kontakt. Amacia os ouvidos e sente-se como água fresca a pingar sobre a pele. Novas contaminações psicadélicas explícitas emergem das derradeiras peças: Kollektivität e Individualität. A primeira reina ainda na dimensão ambiental e ritualística, exibindo um ritmo circular e guitarras minimais e repetitivas, muito ao estilo dos Pink Floyd da altura. A segunda acentua a energia, bombeando um ritmo intenso e tribal. A guitarra rasga o ar em espasmos de distorção, o êxtase cresce de intensidade e escoa-se sem clímax na imensidão da noite...
Trabalho de mestres, o primeiro álbum dos Gila é um salmo de referência na bíblia da kosmische musik. Ideal para voar para longe sem hora marcada de regresso. Pressa não existe por estes lados, apenas a cristalização da sensação...

Tripology


Ninguém diria que o australiano Daevid Allen, guitarrista co-fundador dos Soft Machine, escolheria o caminho que seguiu nos Gong. As diferenças entre os conceitos de ambos os colectivos não poderiam ser maiores. Talvez as suas errâncias em Paris durante o Maio de 68 e, posteriormente, no Sul de Espanha, na companhia de beatnicks, hippies e quejandos, o tivessem afastado da seriedade arty da banda britânica. Mas o mais provável é terem sido mesmo as drogas. Os Gong são um dos agrupamentos mais alucinados e alucinantes de que há memória. Resistente à sucção pela espiral do tempo, a banda inglesa - que também é francesa - sofreu várias alterações de liderança e até de nome ao longo das suas décadas de militância artística. Por entre o caos deste organismo sempre vivo, o período em que Daevid Allen comandava as operações é considerado o mais fértil e imaginativo. E as obras que compõem a Radio Gnome Trilogy são as montanhas mais altas dessa surreal cordilheira discográfica.


Flying Teapot, de 1973, é o primeiro tomo da trilogia conceptual. É, igualmente, um dos discos mais lunáticos e surreais de sempre. Como manda a tradição setentista, assenta numa narrativa desenrolada ao longo dos temas. E o enredo de Flying Teapot alcança um patamar de bizarria invejável, complicado de explicar em poucas linhas. Basicamente, um criador de porcos com uma fascinação pelo Antigo Egipto adquire um brinco mágico a um vendedor de bules de chá que lhe permite ouvir ligações de rádio de um planeta distante: Planeta Gong. Entretanto, a personagem principal da história (Zero the Hero) tem uma visão desses extraterrestes em pleno centro de Londres e passa a venerá-los. As criaturas dão pelo nome de Pothead Pixies, são verdes, têm uma hélice na cabeça e fazem-se transportar pelo espaço em bules de chá... Acredito piamente que seja necessário encontrarmo-nos no mesmo estado alterado dos autores para dar sentido a esta novela psicadélica. O mesmo não se passa com a música, felizmente. O surrealismo e a imaginação extremas transbordam para o som (outra coisa não seria de esperar), mas as composições são do mais inventivo, original e contagiante. Blocos instrumentais cuja matéria-prima é um jazz cósmico, estonteante e venenoso colam-se a um rock vertiginoso, ensandecido. Algo como juntar os Weather Report e os Hawkwind num filme de animação espacial criado por Ed Wood. Zero The Hero & The Witch's Spell, Witch's Song/I Am Your Pussy e o tema-título são bafejados por uma genial anarquia e entram nas nossas cabeças para nunca mais serem esquecidas. The Pot Head Pixies é a peça mais directa, mas é difícil obter airplay quando se fala de drogas tão abertamente. O casal Daevid Allen e Gilly Smith encarna personagens e situações magistralmente e todo este bolo inusitadamente coerente faz de Flying Teapot um disco único e uma experiência ilógica mas belíssima.


Ainda em 1973, é lançada a segunda parte da saga: Angel's Egg. O enredo adensa-se e mantém o surrealismo. Desta feita, Zero the Hero é transportado até ao Planeta Gong depois de tomar uma intoxicante poção. Aí trava finalmente laços com os seus habitantes, começando por uma prostituta alieníngena e acabando na consciência planetária chamada Ovo do Anjo. O objectivo é fazer do terráqueo mensageiro da chegada extraterrestre à Terra, o que acontecerá numa grande festa que dará início a uma Nova Era e à união entre civilizações. Business as usual para Daevid Allen e sua confraria...
A música de Angel's Egg roça o sublime. Este é, na verdade, o capítulo mais conseguido da trilogia, feito de temas directos e engenhosos, com uma sensibilidade apelativa notável. Mas dos Gong nunca se espera o óbvio e o disco é apetecível sem ser fácil e lúdico sem ser descartável. É fantástico do princípio ao fim, como um fio condutor carregado de electricidade e de insanidade, que só se esgotam no último segundo. Other Side of the Sky, Prostitute Poem e Oily Way possuem o raro dom musical de alimentar corpo e alma, pela simbiose entre as atmosferas cósmicas e a sedução física. Steve Hillage brilha com uma aura intensa e a sua guitarra resplandece em Sold to the Highest Buddha e I Never Glid Before. O resto é um pouco de jazz, um pouco de nonsense, um pouco de tudo e um pouco de nada. No fim fica a garantia de termos sido expostos a um dos melhores álbuns dos anos 70.


You constitui o último volume da Radio Gnome Trilogy. Data de 1974 e volta aos territórios mais livres, improvisados e desgarrados de Flying Teapot. O herói da narrativa encontra-se de volta à Terra e prepara o encontro entre civilizações. Será um grande concerto em Bali com o sugestivo nome Great Melting Feast of Freeks. Durante o festim, todos os participantes são presenteados com um terceiro olho que permite aceder à revelação de um novo mundo. Zero distrai-se a comer um bolo de frutas e perde o momento. A partir daí, cai numa espiral sucessiva de nascimento e morte até se tornar parte do Ovo do Anjo... Nada mais simples.
Este seria o último álbum dos Gong com o líder Daevid Allen, que ficaria longos anos afastado do colectivo, dedicando-se a uma miríade de projectos, sozinho ou mal acompanhado. Mas a sua banda do coração seriam sempre os Gong e Allen nunca teve melhoras significativas, como se pode constar pela capa de Acid Motherhood, álbum de 2004. A sua presença em You é efémera e algo apagada, o que se nota na ausência de delírios narrativos e na proliferação de temas instrumentais. A guitarra de Steve Hillage, os sopros de Didier Malherbe e a bateria de Pierre Moerlen (estes últimos futuros fundadores de uns Gong renovados e mais próximos do rock progressivo que do psicadelismo) são as estrelas da companhia. Jazz e rock interagem, expandindo os horizontes de ambos os estilos, não raras vezes até ao irreconhecimento. Isle of Everywhere, Master Builder e You Never Blow Yr Trip Forever arrasam e mostram que este terceiro episódio não deve ser considerado o elo mais fraco da trilogia, simplesmente o mais espontâneo e libertário.

Radio Gnome Trilogy fica para a história como uma das obras mais visionárias e bizarras que o rock já conheceu. Uma verdadeira intoxicação musical, a verdadeira pedrada do outro mundo. Este descaramento pode ser chocante para uns e fascinante para outros. A história não ficou por aqui, sendo que foi novamente resgatada nos álbuns Shapeshifter (1992) e Zero to Infinity (2000), mas sem a surpresa dos primeiros registos.
Hoje a música é mais cirúrgica, alguma move-se com calculismo. Os Gong deste período são igualmente uma cirurgia, mas de coração aberto e sem anestesia. E há quem acredite que o Planeta Gong se tornará visível em 2032... Aqui estão outras pérolas deste universo tão mítico quanto louco.