Imagine-se uma noite em que a escuridão subjuga e o calor entorpece. Uma noite em que é impossível dormir, mas em que os movimentos do corpo são forçados a minima. Uma noite opiácea, em que os espíritos vagueiam sonambulamente fora dos corpos e os sentidos não distinguem luzes reais de sombras irreais. Fourth World, Vol. 1: Possible Musics, colaboração entre o trompetista de vanguarda Jon Hassell e o mestre das ambiências Brian Eno é música em transe profundo, um delírio hipnótico e fantasmagórico. Parece conjurar danças tribais perdidas no tempo, ecos de ritos passados que regressam, possessos. Seduz-nos a segui-lo a paragens onde mortos e vivos se encontram. Onde o visionário e o arcano coabitam.
Este ritual mágico e soberbo estende-se ao longo de seis temas, praticamente indistinguíveis entre si, mas subtilmente impregnados de nuances e atmosferas que agem sobre o ouvinte como magia negra. O bruxo supremo é, naturalmente, o distinto trompete trabalhado de Jon Hassell. Os sons que derrama parece não pertencerem a este mundo e irrigam a música como uma espécie de om meditativo. Como pano de fundo, residem as texturas de Brian Eno. Emergem as paisagens oníricas de monolitos como Another Green World e a abstracção contemplativa das suas tríades com Roedelius e Moebius. O termo Fourth World significava, para Hassell, a junção entre o vanguardismo musical e diferentes culturas e eras. Uma miríade de possibilidades, que assistem este disco em pleno e que reflectem África como um espelho negro. Delta Rain Dream recupera os tambores reais do Burundi, em regime processional e introvertido. Ritualística, Griot (Over 'Contagious Magic') faz das palmas ritmo e Rising Thermal 14° 16' N; 32° 28' E deixa-nos sós perante a claustrofobia da imensidão. Hassell vai fazendo o trompete carpir como uma alma penada ou uivar como um animal selvagem.
A metade mais forte do álbum começa no primeiro tema, Chemistry. A química entre os intervenientes mostra-se, desde logo, perfeita. Trompete sussurrante, um baixo com Parkinson e o percurssionista brasileiro Naná Vasconcelos a acariciar as congas. Ba-Benzélé coloca um Hassell em loop intermitente (inebriante) e outro em desdobramento. Ouvem-se trovões à distância e o ritmo dança seduzindo o céu com a promessa de chuva. Eno mantém-se em segundo plano, adicionando sintetizadores e efeitos, dando tempero. Ambos deixam o melhor para o fim. Charm (Over 'Burundi Cloud') é a peça que define este disco magistral. Durando mais de 20 minutos (o que correspondia a todo o lado B do vinil original), é daqueles temas em que vale a pena ter nascido para poder experienciá-lo. Está lá tudo o que melhor define as artes de Hassell e Eno. O trompete parece um ser vivo, que não só comunica com a nossa alma, como nos toca fisicamente. As electrónicas giram em espirais contínuas e tudo se repete, uma vez, outra vez, até que o solo deixa de existir e estamos a voar lentamente pela noite infinita. Lá em baixo, flora negra, águas paradas, fogo que se eleva mas não nos consegue alcançar. O ritmo conduz-nos, continente acima, até terras do Magrebe, até sabe-se lá onde, porque há coisas das Arábias...
Fourth World, Vol. 1: Possible Musics assumiu-se como uma obra embrionária no que viria a ser o multiculturalismo musical, especialmente na música electrónica e de dança. Uma obra que é mais Hassell que Eno, mas cuja existência seria impossível se os dois não tivessem marcado encontro e traçado o mesmo destino.