27 de julho de 2011

Beef do Vazio


Unconditionally Guaranteed e Bluejeans & Moonbeams são tidos como os pontos mais baixos da obra de Captain Beefheart. Erros de percurso em que o experimentalismo cedeu ao comercialismo, em que os fãs antigos se sentiram defraudados e em que os fãs novos... bem, quais fãs novos?
Ambos estes discos de 1974 quase arruinavam a reputação de Don Van Vliet ao mesmo tempo que não lhe permitiram transpor o portal que dá acesso ao sucesso massificado (se era mesmo isso o pretendido). A emblemática Magic Band, que o acompanhava desde os primórdios, chegou a ser apelidada Tragic Band. Beefheart portava-se quase normalmente na televisão (ver vídeo no final). Que aberrações eram estas!?
Hoje, quase 40 anos passados da sua edição, será que estas obras continuam a ser malditas? O Escrito no Som, imbuído do seu espírito de harmonia e apaziguamento, coloca-os na mesa de operações.


Para começar, Unconditionally Guaranteed mostra na capa Captain Beefheart agarrado a um maço de dólares. Das duas uma: ou este gesto faz parte da sua ironia habitual, ostentando que fez um disco somente pelo dinheiro, ou então fez mesmo um disco somente pelo dinheiro. Outra coisa é o facto de Beefheart estar, por estes dias, apaixonado e recém-casado com a senhora Jan Van Vliet. Em circunstâncias normais, isto é motivo de júbilo. Para um artista como este, é um pesadelo. Ouvir o homem que criou uma das obras musicais mais surrealistas e abismais do século XX (Trout Mask Replica, obviamente) a cantar algo como Happy Love Song é como beber óleo de fígado de bacalhau puro. Por entre a tepidez geral e constante, há algumas canções que sobressaem e se insinuam num estranho chove não molha. This is the Day e Magic Be são pérolas incaracterísticas. Certamente seriam apreciadas noutro personagem que não Captain Beefheart, o que suscita o interessante debate de como os artistas ficam involuntariamente presos aos rótulos - sejam eles bons ou maus. I Got Love on my Mind é um blues-rock enérgico, mas que nunca infringe a lei. Apenas Upon the My-O-My traz ténues reminiscências do passado mais experimental e transgressor. Os restantes temas enchem chouriços na perfeição. A frase 100% Pure and Gold, inscrita na capa do álbum, só pode gozar literalmente com o ouvinte. 25% seria a percentagem correcta.


Bluejeans & Moonbeams começa melhor que o seu predecessor. Party of Special Things to Do avança com algum do veneno vocal e rítmico que os beefheartianos tanto adoram. Logo a seguir, o tratamento dado a Same Old Blues supera o original de J.J. Cale. Não profana os blues tanto como seria desejável, mas mantém a decência. E eis que surge Observatory Crest para salvar em definitivo a honra do convento. Nos meandros da atmosfera ofuscante, de um estio abrasador, palpita um psicadelismo puro e acessível que não se conhecia no Capitão desde Safe as Milk. Infelizmente, o combóio descarrila a partir daqui. Nenhuma das peças seguintes supera o que ficou para trás e somente Further Than We've Gone e o tema-título conseguem deixar algo de memorável. Nem que seja pela impressão que esta encarnação da Magic Band está a emular o rock progressivo ou as paisagens mais açucaradas da música dos anos 70. Em mais nenhuma fase de Beefheart se conseguem escutar solos de guitarra planantes ou teclados com priapismo...

Até hoje, é difícil descortinar se Don Van Vliet agiu deliberadamente na criação destes dois registos ou se foi coagido para tal. Há quem culpe a falta de carisma da banda ou o facilitismo na produção de Andy DiMartino. Certo é que não se ouviu falar em Captain Beefheart nos quatro anos que se seguiram. Mas a fera que parecia dopada e à beira de cair no abismo do mainstream regressaria para nos presentear com mais três discos até à sua retirada final em 1982. Três discos à (sua) moda antiga, desafiantes, intrigantes, imprescindíveis.
Mesmo assim, não existem razões para obliterar totalmente Unconditionally Guaranteed e Bluejeans & Moonbeams. Com a mediocridade criativa facilmente audível que prolifera por aí, é provável que alguns músicos doassem um rim para os fazer. Aqui foram a excelência previamente alcançada e a fasquia muito alta que tramaram Don Van Vliet. Voltar a estes discos de quando em vez não provoca micoses. Mas que nunca sejam glorificados. Isso seria como ver-me a festejar um golo do FC Porto, ou a comer sardinhas assadas com Coca-Cola. Nunca se sabe se poderá vir a acontecer, mas é extremamente improvável...