19 de fevereiro de 2017

Em Branco na Selva




No final da década de 1970, Nova York era um local bem diferente de hoje em dia. Uma cidade falida e entregue à sua sorte, um leviatã perigoso e imerso no caos. Porém, estes tempos de profunda crise e incerteza acabaram por produzir alguma da arte mais fascinante, revolucionária e disruptiva do século passado.
Manhattan, em particular, era um local onde florescia a deliquência e a marginalidade. Existências mergulhadas na pobreza e na ausência de perspectivas para o futuro acabaram por reunir os cacos e ruínas disponíveis, delas fazendo emergir um manifesto de intenção tão chocante como libertador.
Um estilo artístico, niilista e ousado, surgiu das ruas escuras, dos prédios abandonados e dos bares infectos. O seu nome seria, apropriadamente, No Wave, e as suas ramificações estenderam-se da música à pintura, passando pelo cinema.
Esta interdisciplinariedade fez com que músicos fossem actores, actores fossem pintores, realizadores fossem produtores. O mote do it yourself estava na ordem do dia. Músicos que nunca tinham pegado num instrumento davam concertos e gravavam discos. Realizadores que nunca tinham pegado numa câmara faziam filmes com os mais básicos dos meios. Era a Blank Generation em todo o seu anárquico esplendor. A geração em branco, sem rumo definido senão utilizar a angústia, a penúria e a raiva com fins criativos e para fugir à crua realidade.
Ao mesmo tempo que se cimentavam nomes para sempre associados ao movimento punk nova-iorquino, como Ramones, Blondie ou Television, projectos mais limítrofes e experimentais alimentavam o negrume latente na Big Apple. Mars, D.N.A., James Chance ou Lydia Lunch fascinavam e estarreciam com a música que produziam. O cinema acompanhou a tendência e envederou igualmente pela transgressão.
Podemos dizer que Blank City - documentário de 2010 realizado por Celine Dahnier - é o retrato definitivo desta época, no que ao cinema diz respeito. Descrição oral, mas acompanhada por uma suculenta dose de imagens de arquivo, Blank City dá voz aos protagonistas que conceberam esta página singular da história da sétima arte.
Realizadores como John Waters, Jim Jarmusch ou Amos Poe juntam-se a Deborah Harry ou John Lurie para relatar as suas influências, memórias, métodos, motivações. O que fica é um extraordinário documento, a narrativa de um tempo em que as artes se imiscuiam sem preconceitos numa cidade mais parecida com uma selva.