22 de março de 2009

EBG


Falemos da ECM. Não da Empresa de Cervejas da Madeira, mas da editora alemã fundada em 1969 na cidade de Munique por Manfred Eicher e cuja sigla significa Edition of Contemporary Music. Na minha humilde opinião e se a editora fosse portuguesa, mudar-lhe-ia o nome para EBG: Extremo Bom Gosto. Razões para este novo baptismo não faltarão.
A ECM é, actualmente e desde há largos anos, a casa de muitos dos melhores criadores e intérpretes de jazz de que há memória. Para além disto, e desde finais dos anos 70, alberga igualmente o que de melhor se faz ao nível da música contemporânea, lançando obras de compositores tão influentes e determinantes como Arvo Pärt, Steve Reich ou Heiner Goebbels. Sem desprimor para estas ECM New Series, centremo-nos no jazz, algum dele oriundo das mais improváveis paragens e peça central no xadrez desta editora, que tanta qualidade tem dado ao mundo nesta área.
Ao fim de 40 anos de história, a ECM ganhou uma estética própria. Essa estética advém dos nomes do seu catálogo, da qualidade nórdica das suas gravações e dos magníficos e irrepreensíveis trabalhos artísticos que se exibem invariavelmente pelas capas dos LP's e CD's dos seus numerosos lançamentos. Tal como as lendárias editoras 4AD e Factory criaram uma imagem (e uma linguagem) à parte nos anos 80, sustentada pelas imediatamente reconhecíveis capas de cariz gótico, barroco e romântico da primeira e pelos designs vanguardistas de Peter Saville & Co. da segunda, assim a ECM já o tinha feito e assim influenciou muitos sucedâneos, independentemente do tipo de música que editavam. E a música é o mais importante. No caso da 4AD, quem precisa dos In Camera ou dos Sort Sol? No caso da Factory, quem precisa dos Northside ou do inenarrável Steve Martland?
A música da ECM não é feita só de jazz e o jazz da ECM não é o mais facilmente rotulável. Do mais clássico ao mais vanguardista, encontra-se de tudo. Da enorme miríade de artistas que gravitam em torno desta editora, existem obras dispensáveis, claro está, mas não se pode despeitar um único criador. Aqui residem das peças mais sublimes que ouvi até hoje, provenientes de qualquer paleta musical, mas com o jazz em pano de fundo. Será impossível destacar uma única e definitiva, mas Portrait Of A Romantic, de John Surman, faz a noite irromper no meu quarto e deixa cair a lua e as estrelas no meu chão sempre que a ouço; Conte De L'Incroyable Amour, do tunisíno Anouar Brahem, tem o dom de nos fazer olhar para velas acesas, ou fechar os olhos e levitar-nos pelos céus nocturnos do deserto e pela brancura das medinas; Khmer, de Nils Petter Molvaer, com o seu trompete sonâmbulo e lampejos de electrónica é a banda sonora ideal para conduzir por uma cidade espectral e vazia como Lisboa às 4 da manhã; a primeira parte do Köln Concert de Keith Jarrett é, garantidamente, a mais bela improvisação feita para piano que alguma vez ouvi. Ainda hoje me faz pele de galinha a evolução daquela melodia e sinto arrepios de prazer a partir do minuto 07:14. Isto sem esquecer o saxofone de Jan Garbarek, o piano de Paul Bley, a guitarra de Terje Rypdal ou o contrabaixo de Dave Holland... Enfim, podia ficar aqui o resto da noite a enumerar pequenos milagres, como o álbum de 2005 do baterista Paul Motian, cuja capa encima estas linhas e cujo estilo mantém a essência da editora germânica assente em estacas bem firmes no século XXI.
A música da ECM é quase um estilo de vida. É música feita em tons de cinzento, preto e branco, com estilhaços de vermelho e muitos mantos de diferentes tons de azul a cobri-la. É música urbana, sofisticada e moderna, feita à medida das grandes cidades, mas infectada por um romantismo antiquado e incorrigível. Não será certamente música para adolescentes ou perseguidores de adrenalina, mas, e ao cair nos trinta, é música que me faz sentir muitas vezes que a minha solidão, se brotar especialmente à noite, terá sempre companhia.