Obscuro cigano suíço, de aparência Rasputinesca e especialista em Tarologia, Walter Wegmüller foi capturado pelo lendário
manager da Ohr Records Ralf-Ulrich Kaiser com o intuito de produzir um álbum ao qual a sua peculiar personagem daria voz. Corria o ano de 1972. Wegmüller produzia, desde finais dos anos 60, um baralho de cartas de Tarot pintado à mão e que deu o mote para o longa-duração submetido a essa temática.
Tarot: Obra em que cada peça é inspirada e dedicada a uma das cartas do baralho místico. Acompanhado pela
crème de la crème dos anos dourados e gloriosos do
krautrock, Walter Wegmüller assina aquele que é, provavelmente, o melhor álbum de sempre deste estilo musical. Antes dele, nada desta envergadura tinha sido criado pelas hostes teutónicas e, depois dele, nada idêntico foi conseguido. Disco irrepetível, é um labirinto de delícias para quem nele se perde. Quem nele entrar, nunca mais será o mesmo. Se existe esoterismo na música rock,
Tarot será o seu expoente máximo. Ao mesmo tempo malévolo e benfazejo, beatífico e aterrador, este álbum é génio puro do princípio ao fim. Seis músicos numa demonstração superlativa dos seus talentos e um cigano suíço a declamar / sussurrar / profetizar / amaldiçoar / abençoar por cima deles é algo de absolutamente inesquecível e, acima de tudo, intocável.
A montanha russa começa com Der Narr, o louco, a carta sem nome, a faixa 0 em que todos os intervenientes são apresentados, como se o que nos aguardasse fosse um espectáculo de music hall a ter lugar no Congresso de Vilar de Perdizes. Em breves e sincopadas investidas, cada um dos músicos se apresenta. No final, ao chegar a vez de Wegmüller, o mesmo tosse e fala por cima dos estranhos efeitos que irão distorcer a sua voz ao longo do álbum. Um pouco de humor germânico, à laia de preparação para a massiva experiência que se segue. E ela começa com Der Magier, a primeira carta. O mago, que desvenda o oculto, que brinca com a Natureza e que flutua no vácuo sintetizado de Klaus Schulze. O ritmo e os relâmpagos electrónicos confundem e agitam e o feitiço invade-nos. Entra em cena Die Hohepriesterin, a sacerdotisa, convidando a um transe meditativo, que nos envolve como um círculo de velas acesas na maior das escuridões. Wegmüller é hipnótico e o ambiente entorpece. Fazemos já parte da cerimónia, solene e arcana, maior que nós. Segue-se Die Herrscherrin, a imperatriz, ritmo circular, levemente tribal e melodia dolente. O transe acentua-se e os rasgos de electrónica assemelham-se a vibrantes raios de luz. O esoterismo encarna no rock duro de Der Herrscher, o imperador. As guitarras de Manuel Göttsching e Hartmut Enke traçam solos e ritmos em paralelo com a voz xamânica, fumarenta e carregada de efeitos do cigano suíço. Quem precisa de substâncias ilícitas com músicas como esta?...
A carta seguinte representa o hierofante, Der Hohepriester. Lindíssimo tema, de toada folk, onírico e etéreo na forma como conjuga de forma sublime piano, guitarra acústica e flauta. Wegmüller apenas sussurra, e mais não é necessário, pois a beleza pastoral e inocente deste tema dispensa palavras. Contemplativa e luminosa ao mesmo tempo, a música parece levitar em torno do amor platónico ideal ou da união mística com a divindade. Verdadeiro alimento para o espírito... Die Entscheidung, os enamorados, é um pequeno idílio em que o suave piano eléctrico de Jürgen Dollase é sucessivamente contaminado pelos estertores electrónicos de Klaus Schulze e pelos mantras em surdina de Wegmüller. Der Wagen faz entrar novamente o ritmo, cadente e primário da bateria de Harald Grosskopf, que colide com as electrónicas endiabradas de Schulze e a vocalização grave mas possessa de Wegmüller, num dos momentos mais escuros do álbum. A toada negra prossegue com a chegada de Die Gerechtigkeit, a justiça. Sente-se o martelar funesto e inexorável da condenação, a voz afectada do veredicto e da separação.
Der Weise, o eremita, torna a caminhos de maior beatitude, e a voz de Wegmüller encontra-se agora despojada de efeitos. Como se a harmonia se encontrasse melhor na solidão, na retirada de máscaras e artifícios. A melodia deixa a luz passar novamente, uma luz estranha, que parece tocar a alma, mas não o corpo.
Se, ao longo deste disco, se vislumbram lampejos ácidos, nada como Das Glücksrad para o comprovar. A abordagem da carta dedicada à roda da fortuna é feita de forma assumidamente psicadélica, uma trip fantasiosa por terrenos inóspitos, reminiscências infantis e labirintos de espelhos. A sorte e os seus caprichos, tomando forma numa melodia cristalina, mas ansiogénica. Die Kraft é quase funk, com o baixo em regime groove de Jerry Berkers a ditar o ritmo e a inundar o corpo de energia, da força que diz respeito à carta em epígrafe. Quase se pode dançar, desastrada porque humanamente, ao som deste germanismo africanizado, que encerra o primeiro disco de Tarot.
A segunda parte do álbum abre na mesma toada acentuadamente rítmica com Die Prüfung, o enforcado. Parece estarmos em plena noite africana, deserta e imensa, em plena cerimónia tribal, e Walter Wegmüller é novamente o bruxo de negro, de rosto vermelho perante a fogueira. Sente-se a iminência do sacrifício. Der Tod, a morte, o arcano sem nome, é um sopro fantasmagórico de electrónica, inominável e indescritível, um pedaço de nada. Die Massigkeit, a temperança, centra-se numa guitarra em contínuos estertores improvisados, como que à procura de equilíbrio, à qual se sobrepõe a voz de Wegmüller no seu paganismo mais afectado. No magnífico Der Teufel, o suiço sopra-nos ao ouvido sobre a guitarra quase flamenca de Manuel Göttsching e a flauta de Walter Westrupp como se do próprio Lúcifer se tratasse. Tema absolutamente genial, parece apresentar o Diabo não como fonte do mal, mas como algo que surge do lugar mais recôndito para seduzir e mostrar o que está oculto, o que é carnal e instintivo. Sentimo-nos transportados para bosques de árvores muito antigas, em dias cinzentos, receosos, mas ao mesmo tempo curiosos pelo que se encontrará escondido em sítios onde ninguém deveria ir. Esta peça assemelha-se a entrar numa casa velha, vazia e escura, iluminada apenas por luzes bruxuleantes, mas onde não sentimos medo de estar. Onde há algo a conhecer que mais ninguém sabe...
Outra melodia belíssima surge com Die Zerstörung. A torre é dominada pelo piano doce mas firme, em contínua espiral, e invadida por investidas dissonantes de electrónica e bateria. Wegmüller surge, a espaços, indiferente quer à beleza, quer ao caos. Die Sterne é povoada por uma guitarra luminescente, de um brilho pulsante como as estrelas que pretende emular. É a peça mais minimalista do álbum, mantendo-se suspensa no tempo, circular e incomensurável. No seguimento das estrelas, surge a carta que descreve a lua. Der Mond, segue a mesma linha minimal, mas sem brilho. Apenas uma opacidade cinzenta transborda da electrónica desoladora de Klaus Schulze. Em sequência lógica, segue-se Die Sonne, o sol que lateja, em convulsões internas, para colorir mais uma peça fabulosa da kosmische musik. Sem melodia discernível, o ambiente criado por este tema é uma autêntica aurora boreal, música que transcende este planeta. Abruptamente, surge Das Gericht, o julgamento. À medida que se aproxima do fim, o disco vai tornando-se progressivamente mais etéreo, mais irreal, como se chegasse à sua conclusão lógica e a parcimónia fosse o único caminho a seguir, mas igualmente como se regressasse ao princípio e tudo voltasse a ser um livro em branco pronto a ser escrito outra vez. O final efectivo surge com Die Welt, o mundo, fabulosa jam session que se arrasta num rock dolente polvilhado por electrónica até à convulsão final, autêntica nave espacial kraut desgovernada e imparável.
Tarot é um álbum ímpar, uma das pérolas do krautrock, se não mesmo a sua jóia da coroa. As primeiras edições (numeradas) do álbum vinham acompanhadas do baralho pintado por Walter Wegmüller, algo que já saiu de circulação há muito tempo. Resta a música, essencialmente para ouvir sozinho, em ambiente escuro e de longe a longe, de forma a não corromper a magia de cada encontro.