...Lard Free inicia a sua lenta invasão mental com Warinobaril, em que a secção rítmica, cadente e impenetrável, se volta de costas para um saxofone em cantus horribilis tal e qual sereia e uma guitarra que parece gritar por soltura. 12 ou 13 Juillet Que Je Sais d'Elle cresce lentamente, invadindo-nos com uma suave paranóia, muito graças ao sintetizador ansiogénico e imparável que penetra os tímpanos em golpes agudos; sem aviso, uma guitarra perigosamente Frippiana enceta uma segunda parte do tema, esquizofrenicamente distinta da primeira, e em que os ritmos mais espaciais do jazz são novamente reis e senhores. Sente-se já aqui o ténue aroma do fugaz movimento Rock in Opposition, variante extrema do avant-garde progressivo e que influenciou grupos altamente recomendáveis, mas dotados de igual dose de saudável insanidade, como os suíços Dèbile Menthol ou os canadianos Miriodor.
Honfleur Écarlate prossegue a eucaristia a Fripp, que aqui dá pelo nome de François Mativet, mas que emula o mestre na perfeição. Lá atrás, o ritmo propositadamente monótono e descarnado parecem antecipar as litografias musicais em miniatura do excelso Another Green World de Brian Eno. Acide Framboise, provavelmente o momento-chave do álbum, abre com um cinematográfico sintetizador que, por mais que o ouça, não me tira da cabeça o belíssimo filme Der Stadt Der Dinge de Wim Wenders... talvez porque o tema é, no seu todo, cinematográfico; talvez porque a música é tão envolvente, entorpecente e enigmática como a própria película. Um contínuo latejar que invoca noites estranhas ou madrugadas fora do sítio...
Livarot Respiration é docemente noctívaga, impregnada de solidão e fumo e levemente claustrofóbica, devido ao pulsar do baixo de Hervé Eyhani que, apesar das subtis nuances, parece nunca projectar-se além do mesmo círculo. Culturez-vous vous-mêmes termina o álbum em tom lúgubre e minimal, quase um assombro dos Kluster e da sua electrónica ancestral.
...Lard Free é um dos discos mais misteriosos que conheço. Após inúmeras audições, a sensação de estranheza e de incompletude mantém-se. É por isso que gosto tanto de regressar a ele para nunca o descobrir. Algo como ser abraçado pela Vénus de Milo...