Igualmente animalesco a espaços, Sabotage/Live, de 1979, é um excelente documento deste período tempestuoso da carreira de John Cale. Reunido em torno de um conjunto de temas originais gravados ao vivo no lendário club nova-iorquino CBGB's, é um disco visceral, crú e cavernoso, debitando metralha a cada instante e com poucos episódios de cessar-fogo. Esta linguagem militarizada aplica-se perfeitamente ao álbum: basta olhar a capa e ficar exposto ao primeiro tema, Mercenaries (Ready for War). Nota-se a paranóia nuclear do auge da guerra fria e a luminosidade mortiça e doentia de bunkers pós-holocausto. A voz de Cale está mais gutural e enrouquecida que nunca, trazendo até pontuais reminiscências do Motörhead Lemmy. Baby You Know e Sabotage enterram-nos essa aspereza tímpanos abaixo, sem dó nem piedade, envolta em rock pesado e urgente.
Captain Hook merece um parágrafo por si só. O melhor tema do álbum e um dos mais penetrantes do compositor galês, avança como um navio fantasma na noite ao longo de 12 minutos. A letra tanto nos aponta para uma metáfora da decadência do imperialismo britânico, como para as malhas da dependência de narcóticos. No final, após uma trémula e tétrica introdução e uma melodia vagueante e sofrida, Cale surge à beira do colapso, anunciando: By hook or by crook, I am the captain of this life. Acme supremo para uma grande, grande canção, da qual é impossível escapar ileso.
Momentos de acalmia surgem apenas em Only Time will Tell, doce melopeia cantada por uma misteriosa senhora de nome Deerfrance, e em Chorale, lindíssimo e agridoce tema a cappella que encerra as festividades. O supracitado Animal Justice EP foi (e bem) acoplado à reedição de Sabotage/Live. Vale sobretudo pela magnífica e arrastadamente sombria Hedda Gabler e pelo claustrofóbico e provocador Rose Garden Funeral of Sores, mais tarde alvo de uma versão mais histriónica que assustadora dos góticos Bauhaus.
John Cale é único, é um dos grandes. Nunca haverá mais ninguém como ele. Estes dois discos retratam fielmente o homem mais insano e o homem mais introspectivo. São obras de música verdadeira, talhadas na pedra por mãos que não param mesmo quando sangram. E, quando a dor é insuportável e o medo o melhor conselheiro, é possível amparar a queda com o pára-quedas da arte.