17 de abril de 2012

Kosmische Kosmetik XXXVII

Os Brainticket são, acima de tudo, uma multinacional. Um colectivo krautrock que se espraia pela Alemanha, Suíça e Bélgica. Formaram-se nos finais dos anos 60 e permanecem intermitentemente activos até hoje. Editaram uma série de discos ao longo dos anos, alguns bastante recomendáveis, mas quase todos se desvaneceram entre as brumas da memória. Estariam quase esquecidos, se não fosse por uma particular criação: Cottonwoodhill.
Foi considerado um dos discos mais trippy e alucinados da história do rock. Uma vertigem ácida e incontrolável, que não dá sossego às mentes que seduz, mas que lhes garante uma sensação de escapismo inigualável. Mas, musicalmente, o que guarda este disco para lá do desvario?
Quem começa por ouvir Black Sand pode ficar com a ideia que o LSD é fraquinho. É um tema quase funk rock, teleguiado por órgão e com ritmo encorpado. Quase tudo dentro da normalidade, até que uma voz processada entra em cena para baralhar a pauta. Em Places of Light o caso muda de figura, com a flauta mágica de Joel Vandroogenbroek (igualmente organista e o grande timoneiro do projecto) a massajar os nossos pensamentos e a voz alterada de Dawn Muir a escavar os nossos tímpanos. A seguir, a barafunda instala-se. Do nada, a relativa calmaria da música transforma-se num ataque de pânico. Vidros que se partem, ambulâncias em fuga e uma dupla de guitarra e órgão que anunciam a sua visita. Visita que tão cedo não terminará. Brainticket é um apocalipse lisérgico dividido em três partes. Um engolfo num mar de rock psicadélico, música concreta e, acima de tudo, insanidade desmesurada. A Sra. Dawn Muir surge, a espaços, num misto de paranóia e possessão, o ritmo persistente e maquinal não pára, sons de toda a espécie e feitio bombardeiam-nos ilogicamente e a única forma de parar esta enxurrada é fugir. Ou calar o som. Quem correr o risco de ficar até ao fim (se é que a peça tem um fim...), resistiu ao maior ataque ácido nos anais do rock'n'roll. Os Hawkwind ou os Pink Floyd da primeira fase parecem meninos de escola ao pé destes catedráticos intoxicados.
Ainda hoje Cottonwoodhill consegue ser estranho e perturbador e não é, definitivamente, para paladares mais sensíveis e virgens nestas lides. Na altura do seu lançamento, em 1971, seria certamente a quintessência da alucinação psicotrópica esparramada numa rodela de vinil. O inlay do disco exibe as seguintes notas:
Advice: After listening to this record your friends won't know you anymore.
Warning: Only listen once a day to this record. Your brain might be destroyed!
Discordo da primeira, concordo com a segunda. Que alguém o ponha a tocar bem alto no intervalo dos plenários da Assembleia da República.

16 de abril de 2012

Blue Explosion

Os californianos Blue Cheer eram a banda mais pesada do mundo em 1968. Pegando na visceralidade sensual e tecnicamente perfeita de Jimi Hendrix, depenaram-na do virtuosismo e expuseram apenas as ossadas primitivas do rock. Summertime Blues, o seu primeiro (e praticamente único) grande sucesso continua a ser o tema que melhor os retrata. Original rockabilly de Eddie Cochran, transforma-se em artilharia pesada, com riff de guitarra descaradamente roubado a Foxy Lady de Hendrix. É o tema que abre da melhor maneira o álbum de estreia, Vincebus Eruptum, nesse ano de 68.
A estrutura pesada, tosca e crua que sustenta o disco, fez com que muitos o apelidassem de proto-metal. Os Blue Cheer são, inclusive, considerados os inventores da música metaleira. Mas o que se encontra verdadeiramente em Vincebus Eruptum é um concentrado de blues psicadélicos densos e intoxicados, uma guitarra elevada ao extremo e uma secção rítmica esmagadora. Rezam as crónicas que o nome do grupo adveio de uma marca de LSD particularmente poderosa e isso é um dos condimentos que mais enaltece o seu preparado musical. Da meia-dúzia de temas que compõem o álbum, três são versões duras e a pingar testosterona. Além do clássico Summertime Blues, Rock Me Baby (de B.B. King) e Parchment Farm (de Mose Allison) caem igualmente na ceifeira debulhadora dos Blue Cheer. Mais negros e explosivos, dilaceram totalmente as entranhas dos originais.
Os temas restantes saíram todos da pena (ou será melhor dizer do martelo e do escopro?) do baixista e vocalista Dickie Peterson. O registo não varia muito, preocupando-se pouco com trejeitos sentimentais e muito em propagar labaredas sónicas. Merece especial relevo Doctor Please, em que a distorção e o estrépito contínuos evocam a imagem de uma banda fechada numa garagem esconsa e com as mentes em exaltação lisérgica.
Vincebus Eruptum foi reeditado em 2003 com uma faixa extra, All Night Long. Se muitos rotulam o disco como proto-metal, este tema, curto e grosso, puxa a brasa à sardinha do proto-punk. Todavia, por mais tabuletas que se preguem nos Blue Cheer, a mais correcta é seminal. Basta dizer que, sem a influência deste power trio, não existiriam Black Sabbath, MC5 ou Stooges para acabar de vez com a conversa.

14 de abril de 2012

Idades da Pedra

Em 2007 e em parceria com o canal VH1, a BBC produziu uma série de documentários intitulada The Seven Ages of Rock. Uma breve história do rock contada em sete capítulos e que, no geral, alcançou os seus propósitos.
Da génese do estilo às novas tendências que lutam contra a premissa de que o rock está morto, The Seven Ages of Rock evoca movimentos tão importantes como o Blues-Rock, o Punk e o Rock alternativo. Infelizmente temos que suportar a aerocolia do Rock de estádio, mas o Heavy-Metal acaba por berrar mais alto e fazer-nos esquecê-lo. Excelente é o capítulo dedicado ao Art Rock.
No final, fica a sensação (romântica ou lírica) de que o Rock está bom e recomenda-se. Apetece quase trautear o mestre Neil Young: My my hey hey / Rock'n'roll is here to stay...
















O Fim do Arco-Íris

Terry Riley: A Rainbow In Curved Air; Poppy Nogood and the Phantom Band album coverEm 1967, nem a música contemporânea escapou ao ferrão psicadélico que picava às cegas. Terry Riley, compositor norte-americano inicialmente usurpador das técnicas de Stockhausen, cedo se deixou seduzir pelas novas possibilidades deste período artisticamente ilimitado. O contacto com outro compositor revolucionário, La Monte Young, abriu-lhe as portas da percepção a outras realidades sonoras e essa iniciação acabou por formar um dos pais do Minimalismo.
Foi, então, em 1967 que começou a tomar forma o que, dois anos depois, viria ser A Rainbow in Curved Air. Um magnífico documento em que os padrões do Minimalismo clássico se distorcem pelos ventos do psicadelismo e em que o pensamento livre de Riley musica o que o fascina.
A composição A Rainbow in Curved Air é uma mistura suprema. Uma sonata de electrónica primordial, em que padrões sonoros se sobrepõem uns aos outros, se empurram e entrechocam numa dança livre mas labiríntica. Todos os instrumentos são tocados por Riley, que consegue conjurar uma peça notável em que os espíritos livres do jazz, do Minimalismo e da música indiana são reanimados pelo sopro da vida psicadélica. O som evolui e retrai-se, padroniza-se e renova-se e fica a sensação que esta música joga Pacman com os nossos neurónios.
O crepúsculo baixa sobre Poppy Nogood and the Phantom Band. A explosão colorida de strobes mentais que o precedeu transforma-se em contemplativa abstracção. Remendos intrusivos vão sendo cerzidos à base do tema, mais ou menos até ao final dos primeiros 5 minutos, altura em que a música entra em modo de suspensão, deixando um saxofone penetrante, hipnótico e monástico a sós com o ouvinte. Terry Riley era já conhecido neste período pelos seus All Night Concerts, eventos em que a performance do compositor durava uma noite inteira. Antes dos Festivais de Verão despontarem, foi a única altura em que os espectadores levavam sacos-cama para os concertos... Poppy Nogood and the Phantom Band reflecte bem um pedaço desse pequeno infinito, em que a música parece ser feita para romper o véu do tempo e circular pelo Cosmos ilimitado.
Tal como não existe um pote de ouro no final do arco-íris, não há um pote de ouro no fim de A Rainbow in Curved Air. Começar a percorrê-lo e alcançar o seu final apenas nos enriquece o espírito. E não há riqueza maior...

6 de abril de 2012

Kosmische Kosmetik XXXVI

Pegue-se numa guitarra crua e num órgão mal passado. Adicione-se uma secção rítmica desejosa de largar suor e uma voz disposta a admitir que os blues nasceram na Alemanha. Misture-se tudo sem preceitos e leve-se ao forno à temperatura máxima, para que o cozinhado resulte nos Orange Peel. O equivalente krautrock dos Atomic Rooster ou dos Deep Purple dos primórdios. Dominados por teclados inflamados e um som gordo e saturado, os Orange Peel são a encruzilhada onde o rock alemão dá de caras com os blues em carne viva.
É um mistério o motivo pelo qual muitas das bandas germânicas de finais de 60 e princípios de 70 editaram apenas um disco antes de se sumirem sem deixar rasto. Por um lado, subsiste sempre a curiosidade em saber o que teriam feito e como a sua arte teria evoluído se não se dispersassem. Por outro, ainda bem que o fizeram, pois deixaram como legado obras de culto, achados irrepetíveis.
O único disco dos Orange Peel é um opus de quatro temas, abrasivo e em fúria constante, um caldeirão de emoções que faz atirar a toalha ao chão aos incautos que tentarem lutar contra as suas investidas. You Can't Change Them All, anuncia o primeiro tema. Mas bem que tenta, e é provável que o consiga, pois argumentos não lhe faltam. Trata-se de um épico de peito cheio, debulhando com energia tudo o que encontra pela frente. Toma o freio nos dentes e assume-se como uma das peças mais inflamadas e destabilizadoras de sempre nos anais do krautrock. O incêndio propaga-se em Faces That I Used To Know, intervenção rock curta e concisa, que foca na voz, no órgão e na guitarra os seus pontos essenciais.
Tobacco Road é o mais próximo que podemos falar de krautblues. O Reno transforma-se no Mississippi e a corrente arrasta-nos a velocidade psicadélica. Em We Still Try To Change, os Orange Peel encapsulam as suas práticas num tema só, debitando rock, blues, psicadelismo e desvario sem tréguas nem constrições. Mas tudo embrulhado e oferecido à maneira alemã. Os rodriguinhos aqui são supérfluos. Os disparos são à queima-roupa, sem direito a colete à prova de bala.
Em 1970, altura da edição deste registo, os Orange Peel ajudavam à disseminação do novíssimo e vanguardista rock alemão, juntamente com nomes como Faust, Can ou Amon Düül II. A memória de todos estes mantém-se bem viva até aos dias de hoje. Os Orange Peel, provavelmente os detentores de um som mais pesado e poderoso, se bem que menos arriscado, caíram no esquecimento. Mas a porta da memória está sempre entreaberta e o saber não ocupa lugar...

Omelete Progressiva

Como estamos a chegar à Páscoa, é oportuno falar dos Egg. Uma banda rock sem guitarras, que habitou o planeta entre 1970 e 1974. Ao comando estava Dave Stewart, mago virtuoso do órgão, que, na companhia do baixista Mont Campbell e do baterista Clive Brooks, espargiu alguma da música mais original dos cânones do rock progressivo. Juntando a essa base elementos clássicos, jazzísticos e ramificações da cena de Canterbury, o trio londrino conjurou um melting pot que apraz relembrar. E o segundo álbum da banda é a melhor forma de o fazer.
Após um promissor primeiro disco - Egg - que apalpava terreno e brincava com várias possibilidades musicais, chega em 1971 The Polite Force. E com ele unem-se as pontas soltas. Mais conciso e focado, coloca os Egg no seu próprio pedestal e delimita-os dos seus pares da época, nomeadamente os Emerson, Lake & Palmer, dos quais pareciam ser uma espécie de versão mais espinhosa. É, em suma, um disco imponderável, dos melhores exemplares da espécie Canterbury.
A Visit to Newport Hospital, tema que dá o pontapé de saída a The Polite Force, captura na perfeição a essência dos Egg. Irrompe e desvanece-se em toada hard rock, o que não deixa de ser bizarro, pois o que soa a guitarra são as teclas de Dave Stewart. Obviamente, o virtuosismo deste não passa despercebido ao longo da peça, vindo à tona em absorventes e complexos trechos individuais. O que sobra é Canterbury vintage, uma canção que, liricamente, resume a história da banda. A seguir à relativa bonança deste arranque, espera-nos a visita cerebral e descompassada de Contrasong. Mais uma equação que uma canção, este estranho exercício baralha e confunde, sem melodia definida, com sopros pelo meio e vestígios da improvisação a regra e esquadro dos Henry Cow. Boilk acentua a queda no abismo da experimentação. Tijolo a tijolo, vai sendo erguido um muro de ruídos vários e improváveis. Aparenta ser um pedaço esquecido de Ummagumma dos Pink Floyd que nos veio visitar sem aviso prévio. E eis que a atmosfera demencial se extingue ao som de Bach: Durch Adams Fall 1st Ganz Verdebt. Que tanto salva da loucura como pode ser o passo definitivo para não se sair dela...
Long Piece no. 3 é a viagem definitiva proporcionada por The Polite Force. Uma maratona progressiva instrumental em quatro partes, remendadas entre si e ricas em variações. As influências clássicas estão lá, como sempre, mas distorcidas e desmembradas. A diferença entre os Egg e os grupos progressivos mais excessivos e teatrais reside aqui: o virtuosismo e o domínio perfeito dos instrumentos faz-se sem show-off. O objectivo é provocar novas sensações e não prender o ouvinte numa teia sonora da qual não se consegue libertar. Provavelmente a qualidade que distingue a maioria das bandas associadas a Canterbury...
Os Egg editariam ainda The Civil Surface, álbum póstumo, em 1974. Tal como os dois pares que o antecederam, é um disco bastante aconselhável e inventivo. Mas The Polite Force será sempre primus inter pares.

Poker de Dados


É sempre bom assistir ao regresso controlado da electrónica analógica. Na sua artificialidade, é a que soa mais real. Cativa por ser esquiva e pela hipnose latente. É certo e sabido que a Alemanha criou uma escola neste estilo, encabeçada por nomes lendários como Kraftwerk, Tangerine Dream, Klaus Schulze ou Cluster. A palavra espalhou-se ao longo das últimas décadas e o pulsar cósmico e flutuante desta música tornou-se revolucionário, foi considerado ultrapassado e, nos últimos anos, tem sido novamente objecto de expedições e discreta ribalta.
Da Suécia chegam os Roll the Dice. Composto por Peder Mannerfelt e Malcolm Pardon, respectivamente um sueco e um inglês fixado em Estocolmo, o duo começou por editar um discreto mas sólido álbum de estreia em 2010. Roll the Dice, o disco, movia-se pela tundra da electrónica minimal e semi-improvisada, num filme sónico espacial. 2011 delapidou o som e a edição de In Dust trouxe a consolidação de um projecto a seguir com atenção. O sentido produtor de Peder Mannerfelt (que participou no excelente álbum de estreia de Fever Ray) encontra-se aqui mais apurado e o disco perde um pouco da amálgama sideral do seu antecessor. Parece dividir-se entre vertigens urbanas e a ambiência electro-pastoral dos Cluster. Tanto um como o outro são objectos imperdíveis para os que gostam de surfar pelas vagas da electrónica analógica que se levantaram em terras germânicas. Consta que, ao vivo, são igualmente pungentes e o impacto visual é forte. Só o Benfica me poderia impedir de os ver anteontem no Maria Matos... Ficam o toque à distância e os dois álbuns completos para desbravar aqui.