Pode ser apenas uma cidade (bem bonita, por sinal) do sudeste britânico, mas reuniu em tempos (involuntariamente ou não) uma certa vanguarda musical que ainda hoje predispõe bem. Ficarão para a eternidade associados a Canterbury nomes como os Soft Machine, Caravan, Gong ou Hatfield and The North. Outros, como os Matching Mole, foram pontos de paragem na viagem por esta suculenta sonoridade. A sua vida foi curta, mas selou um clássico do rock progressivo dos anos 70 em Inglaterra.
Acabado de editar o seu primeiro álbum a solo, o exploratório End of an Ear, e ainda a despertar do sonho diurno que foi a primeira encarnação dos Soft Machine, Robert Wyatt acolheu no seu regaço três membros da nata das natas do tal som de Canterbury. Eram eles o teclista David Sinclair (dos Caravan), o guitarrista Phil Miller (dos Delivery) e um excelente músico de estúdio chamado Bill MacCormick, especializado no baixo. Wyatt, como sempre, tomou conta da bateria e emprestou o timbre único da sua voz. O nome do projecto, que foi igualmente o título do seu primeiro álbum, era uma variação estilística das palavras Machine Molle, a tradução para francês de Soft Machine.
1972 foi o ano da estreia. Uma estreia auspiciosa, que floriu como uma rosa, mas que logo murchou. O quarteto toca com ganas, interage por instinto, comunica por osmose. Os recursos estilísticos são típicos dos arquétipos de Canterbury: Elasticidade interpretativa, inventividade rock, criatividade jazz e a mescla única de melodia e complexidade para o topping de um disco belo e bizarro.
Quem resiste a O Caroline resiste a tudo. E não tem alma. De todas as sublimes criações com o cunho de Robert Wyatt, esta é uma das mais admiráveis. Uma canção de amor e de perda, inusitadamente luminosa, como se o objecto de desejo continuasse a viver em nós depois de ter partido e o elo de ligação persistisse. Provavelmente teríamos um fabuloso compêndio de canções de amor light se o álbum prosseguisse nesta toada, mas não estava na mente desta gente dar descanso ao ouvinte. Instant Pussy instala-se, com felino langor e o embalo oceânico da voz de Wyatt. Abre a porta para o magnífico Signed Curtain, canção com cabeça, tronco e membros, mas em que todos trocaram de posição. A letra é surreal, a música um rebuçado.
Part of the Dance tira-nos em definitivo da zona de conforto, presenteando uma longa jam de jazz e rock entrelaçados pelos cabelos. A expedição adensa-se em Dedicated to Hugh, But You Weren't Listening . Beer as in Braindeer, cuja progressão aventureira apenas encontra descanso na clareira rock com coda sibilante de Instant Kitten. Entre a aridez e a melancolia, o mellotron de Immediate Curtain encerra o pano.
O fugaz agrupamento editaria no mesmo ano mais um disco antes da dissolução: Matching Mole's Little Red Record, uma espécie de sucedâneo do primeiro registo, largamente instrumental, bom companheiro, mas nunca arrebatador. Meses depois, Robert Wyatt sofreria um acidente que acabaria com a sua vida enquanto baterista. Os Matching Mole arderam de uma vez, mas o infortúnio deu ao mundo um dos mais geniais e peculiares escritores de canções dos últimos 40 anos.