27 de dezembro de 2008

2008: A Soundtrack

 

Agora que caminhamos a passos largos para o final do ano, não poderia deixar de elaborar a minha listagem pessoal dos álbuns que mais ouvi e que mais me agradaram ao longo de 2008. Acumulei 50, numa ordem de preferência dúbia, mas propositada... Ei-los:

1. Portishead – Third

2. Fleet Foxes - Fleet Foxes

3. TV On The Radio – Dear Science

4. Vampire Weekend – Vampire Weekend

5. MGMT - Oracular Spectacular

6. Bon Iver – For Emma, Forever Ago

7. Deerhunter – Microcastle / Weird Era Cont.

8. Hercules & Love Affair - Hercules & Love Affair

9. Nick Cave & The Bad Seeds - Dig! Lazarus! Dig!

10. The Bug - London Zoo

11. DJ / Rupture - Uproot

12. Hot Chip - Made In The Dark

13. The Hold Steady – Stay Positive

14. Elbow - The Seldom Seen Kid

15. Lindström - Where You Go I Go Too

16. Spiritualized – Songs In A & E

17. Destroyer – Trouble In Dreams

18. The Week That Was - The Week That Was

19. Shearwater - Rook

20. Cut Copy - In Ghost Colours

21. Beck - Modern Guilt

22. NOMO - Ghost Rock

23. The Dodos - Visiter

24. Fuck Buttons - Sea Horrrsing

25. James Blackshaw - Litany Of Echoes

26. Bonnie "Prince" Billy - Lie Down In The Light

27. Sigur Rós - Með Suð Í Eyrum Við Spilum Endalaust

28. Santogold - Santogold

29. High Places - High Places

30. The Last Shadow Puppets - The Age Of Understatement

31. David Byrne & Brian Eno – Everything That Happens Will Happen Today

32. Brian Wilson - That Lucky Old Sun

33. Beach House - Devotion

34. Department Of Eagles - In Ear Park

35. Atlas Sound - Let The Blind Lead Those Who Can See But Cannot Feel

36. Kasai Allstars - In The 7th Moon, The Chief Turned Into A Swimming Fish And Ate The Head Of His Enemy By Magic

37. Joan As Police Woman – To Survive

38. The Raconteurs - Consolers Of The Lonely

39. Gang Gang Dance - Saint Dymphna

40. Crystal Castles - Crystal Castles

41. Robert Forster - The Evangelist

42. Fujiya & Miyagi – Lightbulbs

43. Philip Jeck - Sand

44. The Felice Brothers – The Felice Brothers

45. The Fireman – Electric Arguments

46. The Caretaker - Persistent Repetition of Phrases

47. The Ruby Suns - Sea Lion

48. Fennesz - Black Sea

49. The Walkmen - You & Me

50. Kings Of Leon - Because Of The Times

10 Sadinos

Na senda dos vinhos, as Terras do Sado estão a conquistar terreno. Antigamente, os vinhos da Península de Setúbal eram conotados única e exclusivamente com a casta Castelão, vulgarmente conhecida como Periquita. Nos últimos anos, porém, o terroir eminentemente arenoso desta região tem adoptado e adaptado novas castas e dado origem a uma mescla de sabores e aromas de alguma excelência. Aqui fica um singelo exemplo de alguns tintos que provei e recomendo. As monocastas da Casa Ermelinda Freitas são, maioritariamente, divinais...


1. Casa Ermelinda Freitas Syrah 2005


2. Casa Ermelinda Freitas Touriga Nacional 2006


3. Casa Ermelinda Freitas Trincadeira 2005


4. Domingos Damasceno de Carvalho 2005


5. Adega de Pegões Colheita Seleccionada 2004


6. Quinta da Mimosa 2004


7. Quinta do Perú 2006


8. Quinta da Bacalhôa 2004


9. Terras do Pó Reserva 2005


10. Só Syrah 2005

Concordes Neozelandeses

"Formerly New Zealand's fourth most popular guitar-based digi-bongo acapella-rap-funk-comedy folk duo". Assim se auto-intitula a dupla de cómicos Flight Of The Conchords. Autores e protagonistas de programas de rádio e televisão que gravitam maioritariamente em torno da música, Bret McKenzie e Jemaine Clement possuem um talento único para desconstruir e decalcar os tiques de grandes figuras do pop rock. O recente álbum, originalmente intitulado Flight Of The Conchords, faz jus à fama do duo. Encarnações hilariantes dos Pet Shop Boys e de David Bowie, entre outras delícias, tornam este disco uma injecção de música transformada em humor inteligente. Há largos anos, Frank Zappa lançou a questão: Does humor belong in music? Graças a projectos como este, podemos afirmar com toda a certeza: Yes, it does. Quem conhecer bem o Bowie da primeira fase até Ziggy Stardust e apreciar a sátira, irá deliciar-se com esta singela cantiguinha:

26 de dezembro de 2008

25 Sons para o Inverno


Eis que mais um Natal ficou para trás, enquanto o Inverno está para durar... Aqui fica mais uma escolha de discos sazonal, pop e rock, subjectiva e variada, alternativa ou indie, que fazem as delícias deste escriba em dias sombrios e noites glaciares. Uns aquecem, outros arrefecem, haverão até alguns que não aquecem nem arrefecem. A qualidade, essa, é transversal...

1. Sigur Rós - ( )

2. Radiohead - Kid A

3. Joy Division - Closer

4. Leonard Cohen - Songs Of Love And Hate

5. Cluster - Grosses Wasser

6. Klaus Schulze - Irrlicht

7. Bill Fay - Bill Fay

8. Nick Drake - Pink Moon

9. Peter Hammill - The Silent Corner And The Empty Stage

10. Nico - The Marble Index

11. David Bowie - Heroes

12. John Cale - Music For a New Society

13. David Sylvian - Brilliant Trees

14. Scott Walker - Scott IV

15. Pearls Before Swine - The Use Of Ashes

16. Kraftwerk - Radio Activity

17. Brian Eno - Before And After Science

18. Nick Cave & The Bad Seeds - The Boatman's Call

19. Lou Reed - Berlin

20. Portishead - Third

21. Iggy Pop - The Idiot

22. Big Star - Third / Sister Lovers

23. Tangerine Dream - Phaedra

24. This Mortal Coil - Blood

25. The Cure - Disintegration

30 de novembro de 2008

...Vintage Plus

Provavelmente, Kim Fowley já fez tudo o que havia para fazer. Ou talvez não. O homem que cria e produz música desde finais dos anos 50, passou por todas as ondas, géneros e modas desde então. Produtor, compositor, artista, editor, relações públicas, designer de imagem, ou apenas figura de corpo presente, Fowley participou num sem-número de êxitos discográficos, mantendo-se, mesmo assim, praticamente desconhecido fora do circuito de culto do meio musical. Entre outros feitos lendários, consta que terá sido ele a mostrar pela primeira vez a John Lennon e a Paul McCartney Pet Sounds dos Beach Boys (e toda a gente sabe o que aconteceu a seguir...), foi ele que produziu uma das primeiras canções dos Soft Machine, que descobriu o mítico guitarrista Ritchie Blackmore, que apresentou ao mundo as Runaways e que até foi convidado pelo egocêntrico Frank Zappa para integrar os seus Mothers Of Invention. Como nota de rodapé, afirmou que Boyd Rice era o novo Jesus Cristo, o que é intrigante até para os seus parâmetros... De qualquer forma, este pesadíssimo Curriculum Vitae nunca o afastou de onde mais se sente à vontade: a rua, de onde brotam as raízes das mudanças e fenómenos musicais que realmente interessam. Kim Fowley tem a bonita idade de 69 anos. Continua a mover-se onde sempre se moveu. E a surpreender. A sua música não é fácil. O seu imaginário, hermético. No campo do incatalogável, talvez lhe pudéssemos chamar o David Lynch do rock'n'roll. E ele também faz filmes, como exemplifica o recente Pink Cement. Ora apreciem Mr. Fowley em todo o seu inusitado e surreal esplendor:




Há mais, como que a provar que o termo freak não foi inventado por acaso...





Kim Fowley tem um site: http://www.kimfowley.net/. Por estes dias, o mesmo abre com uma pequena película / pérola acerca de um final diferente nas últimas eleições norte-americanas e que é simplesmente hilariante. Só para mentes abertas e sem preconceitos, como tudo o que rodeia a arte deste homem, aliás...


Vintage pode ser algo raro, algo que não se produz mais. Pode ser algo que definiu uma época. Pode ser igualmente a capacidade que um vinho tem de envelhecer em garrafa ganhando com isso qualidades. Kim Fowley é vintage, Luiz Pacheco já o foi em vida, continuará certamente a sê-lo no legado que deixou. Envelhecer assim não é sinónimo de decadência. É fazer da decadência obra de arte e demonstrar que uma vela sozinha numa imensa escuridão pode brilhar mais intensamente que mil néons vazios e repetitivos...

Vintage...

É impossível não associar o envelhecimento à decadência, a uma degradação involuntária quer física, quer cognitiva. Saber envelhecer é uma arte, assim como saber envelhecer na arte. Se tornar-se mais velho é tornar-se mais sábio, mais prudente ou mais sensato, pode ser também um realçar dos traços de carácter mais vincados, para o melhor e para o pior.

Luiz Pacheco faleceu em Janeiro de 2008. Pode afirmar-se com uma grande dose de certeza que viveu a vida mais rocambolesca e tragicómica de todos os escritores portugueses do século XX. Nascido no seio de uma família burguesa, termina os seus dias num lar de idosos no Montijo. Pelo meio, passou pela vida como um indivíduo alto, escanzelado, calvo, usando óculos com lentes muito grossas devido a uma forte miopia e, posteriormente, cataratas, cuja cirurgia o amedrontava, vestindo roupas usadas (por vezes andrajosas e abaixo ou acima do seu tamanho), hipersensível ao álcool (o que lhe valeu a fama de bêbado incorrigível), hipocondríaco julgando-se sempre à beira da morte (devido à asma e a um coração fraco) e um acintoso conversador, sempre rebelde e, por vezes demasiado, irreverente. Foi lançado há pouco tempo o livro O Crocodilo que Voa, que reúne, sob a coordenação de João Pedro George, uma série de entrevistas a várias publicações que Luiz Pacheco deu desde 1992. Obra obrigatória para conhecer a biografia desde autor e, particularmente, o seu discurso único, muitas vezes colorido e corrosivo, mas sempre lúcido. Alguns textos de Pacheco, com destaque para o imortal e desafiador O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor encontram-se aqui, zona que possui igualmente links para excertos de um documentário que passou na 2, pouco antes da sua morte e que vale muito a pena ver.

Há em cada um de nós uma pulsão de vida e uma pulsão de morte; um desejo de sobrevivência e de auto-aniquilação. Por vezes, há quem se sinta mais vivo na falha que no sucesso, na carestia que na opulência. Quase como um futebolista que prefere rematar para o lado perante uma baliza vazia...

29 de novembro de 2008

Contos & Prosas


Havia já algum tempo em que acordava e o primeiro pensamento que me invadia era a morte. Naquela manhã em particular, esse pensamento perseguia-me e assolava-me, deixando-me num limbo entre tomar o pequeno-almoço ou ficar na cama até padecer de inanição; entre o barbear-me ou aproveitar o facto para golpear-me no pescoço um pouco mais profundamente e ficar a olhar-me no espelho até os olhos perderem a cor a as pernas perderem as forças. O primeiro pensamento depressa se desvaneceu, pelo tempo desperdiçado e as escaras que o meu corpo podia vir a contrair. O mesmo aconteceu ao segundo, pelo excessivo derramamento de sangue que tal acto implicaria no chão impecavelmente limpo da casa de banho. Eu não gosto de dar trabalho a ninguém, muito menos à minha esposa, e idealizava uma forma muito mais clássica e romântica de morrer. Uma garrafa de absinto combinada com uma caixa de Rohypnol, talvez... ou, quiçá, cortar os pulsos numa banheira enquanto me esvaía bebendo umas taças de Don Perignon ao som dos Requiems de Mozart e depois de Ligeti no meu iPod...
Com o passar do tempo e com o transtorno da bicha na portagem da Vasco da Gama, a ideia recorrente desvaneceu-se graciosamente. No rádio do carro soava Brian Eno e, entre o torpor do trânsito e o cinzento da manhã, deixava-me embalar por sons que não me faziam sentir vivo nem morto, apenas suspenso... E pensei que seria maravilhoso a vida real clivar-se por uns momentos e deixar-me ser livre. Livre para estar só.
O telefonema tinha ocorrido 3 dias antes. Uma voz sóbria, de um indivíduo que aparentava ter uns 50 anos, observava ter recebido o meu currículo (“Curriculum”, como indicou...) e pedia a minha comparência numa entrevista. Era hoje. O meu emprego satisfaz-me e realiza-me tanto como o de 20% dos portugueses (25%, talvez, contando com o empregado de mesa do “Café Real”, que tem a motivação extra de partilhar a sua cama de solteiro com a filha de 22 anos do patrão e o Sr. Alberto da Casa de Alterne “O Cravo Negro”, porteiro que leva as meninas a casa em noites de tempestade e goza de alguns favores das mesmas por essa atenção), logo, e pensando no salário, aceitei sem hesitações.
A manhã no emprego, com as habituais críticas destrutivas do chefe e as vozes monocórdicas dos colegas, fez-me odiá-lo mais um pouco e a morte voltou para me assombrar o pensamento. Cheguei a pensar no foco de discórdia e confusão que provocaria na equipa o facto de me enforcar na casa de banho com o fio do rato do meu computador (por falar nisso, este rato está tão perro que tem que ser limpo...). Se calhar pediriam aumentos... Ou culpariam a última derrota do Benfica... Mas isso não seria belo e é o belo o que mais me preocupa no fim. A maioria das pessoas gosta de um final feliz. Nos filmes, nas peças de teatro, nas novelas da TVI... Eu preocupo-me com o meu final feliz. Uma morte feliz. E bela. Tão bela que só podia ter sido inflingida por quem era dono da sua antítese, da sua vida.
Aproveitei a hora de almoço para me escapulir. A entrevista era ali perto, na Duque d’Ávila. Estava nervoso. Tinha bebido uns copos de Porca de Murça ao almoço para relaxar, mas agora o medo imperava. O hálito a tinto duriense preocupava-me, assim como as pupilas dilatadas. Como hoje era um dia especial e trajava fato e gravata, encaminhei-me para a Versailles. Levava já na ideia uma bica dupla, uma água Castello, uns cigarros para sorver concentração.
Eram 2 e meia da tarde. Três pessoas espraivam-se pelas mesas do solene recinto. Uma senhora idosa, com ar de quem passava as tardes ali, segurando na mão esquerda um cigarro com boquilha e na direita uma revista cor-de-rosa; um homem que aparentava a minha idade, fitando o vazio com um café à sua frente, gravata roxa, que paranoicamente imaginei ser mais um convocado para a Minha entrevista de emprego; um jovem barbudo, cabeça baixa, semi-oculta por uma garrafa de água lisa, lendo avidamente. Adivinhei-o estudante, ou simpatizante do Bloco de Esquerda. Descartei a última hipótese, pois, passados momentos, levantou-se para sair e vislumbrei um livro de Paul Auster na sua mão direita.
Os espelhos seguiram os meus passos até uma das mesas do canto. O empregado serviu-me uma bica dupla que traguei com prazer enquanto lia avidamente uma e outra vez umas páginas representativas da empresa que me aguardava dali a uma hora. Repetidamente soavam-me nos ouvidos as expectativas da minha mulher (“Vai tudo correr bem”), da minha mãe (“Tu és capaz”), do meu amigo Miguel (“É agora ou nunca”). A morte espreitou por entre os meus pensamentos, mas estava ocupado demais para ela...
Ao princípio não reparei no vulto que se sentou na mesa oposta, de frente para mim. Até pensei que fosse um truque dos espelhos, mas ao olhar para a sombra foi o meu rosto que vi. Descortinei um movimento de braços a libertarem-se de um pesado casaco e olhei furtuitamente. Uma mulher de cabelos negros e lábios excessivamente pintados olhava ao redor, em busca de alguém que a servisse. Retomei a leitura e notei, com satisfação, que o indivíduo da gravata roxa se dirigia para a saída. “Menos um” – pensei, apercebendo-me imediatamente do ridículo da minha constatação.
Momentos depois, alguém surge de pé ao meu lado. Era ela. Era impossível não reparar nos lábios redondos e escarlates.
“Posso usar o seu isqueiro?” – Perguntou.
A abordagem causou-me um certo incómodo, pois estava embrenhado na leitura. E mais estranheza me causou, pois ela segurava um cigarro aceso entre os dedos.
“Para quê?” – Respondi, com uma certa rispidez.
“Para queimar o que você está a ler. Não deve ser agradável, pois fá-lo suar.”
Levei a mão à testa e ela voltou encharcada. Esbocei um sorriso esquálido pela tensão que começava a apoderar-se de mim com a proximidade da entrevista.
“O que estou a ler é muito importante. Muito mesmo.” – Disse eu, num misto de desdém e frieza. “Está a estudar. Vai ter um exame...” – Observou ela.
Pensei para comigo o que teria esta mulher a ver com isso. Um pêndulo soou. Ou seria imaginação minha? Sem saber bem porquê, senti que eram 3 da tarde. Faltava meia-hora para o aguardado momento. E as folhas de papel continuavam nas minhas mãos, não pela ordem que as arrumara primordialmente. E aquela estranha mantinha-se de pé ao meu lado, olhando-me como se fosse o último homem em Lisboa numa tarde outonal de quinta-feira. Estragava-me o estratagema, arruinava-me a concentração. Apetecia-me mandá-la desaparecer, que me deixasse sozinho na minha ansiedade insondável.
“Sente-se...” – Murmurei.
“...se quiser, logicamente.”
Como se fosse uma deixa num diálogo há muito ensaiado, ela assim o fez. Cruzou os braços em cima da mesa e o branco do atoalhado rivalizou com o relevo alvo do seu busto, insinuante no decote que parecia apontar para mim. Debruçou-se mais na minha direcção e olhou para os papéis que segurava, esboçando um meio sorriso inquisitivo.
“Não me diga que é mediador de seguros?”
“Não me diga que é puta?” – Apeteceu-me responder de rompante.
“Estou a tentar vir a ser. Isto é, pelo menos até você chegar.” – Acabei por dizer, forçando a ironia.
“Até eu chegar? Quer dizer que pode já não vir a ser por minha causa?”
Todo o espaço ao meu redor pareceu implodir com laivos de surrealismo. Será que ao fim de tanto tempo à espera desta oportunidade, a minha auto-confiança iria esboroar-se por causa de uma desconhecida que decidiu gozar comigo só porque eu bebia bicas duplas? Ou porque suava em bica? Ou porque poderia ser um seu potencial cliente, quiçá o primeiro do dia? Logo eu, que tinha comprado o meu fato preto num outlet e os sapatos na Zara?
“Caso não tenha reparado, a sua presença causou-me um certo incómodo. Estava a tentar estudar, pois tenho uma entrevista daqui a pouco, e você veio interromper-me.”
“E não gostou? Se não, porquê convidar-me a sentar?”
Aos poucos, a tipa tirava-me do sério. E pior ainda, tirava-me o tempo que restava. Eram agora 3 e um quarto. Daqui a 15 minutos, estaria a ser entrevistado, ou a aguardar ansiosamente num sofá de pele enquanto ia treinando sucessivamente a melhor forma de dizer “Boa tarde, o meu nome é Vasco Pinto.”
“Por mera cordialidade” – respondi.
“Agora que fiz a minha parte, pago a minha despesa, pago também a sua, e vou retirar-me”.
“Tem mesmo que ir? Passe a tarde comigo.” – afirmou ela.
Não consegui evitar rir desta vez. E cheguei à conclusão de que ela não era puta, apenas maluquinha. Debrucei-me sobre ela, olhei-a fundo nos olhos castanhos, densos mas límpidos, e respondi:
“Porquê eu?”
“Quem é que lhe ofereceu essa gravata?” – Perguntou ela.
Depois desta resposta/pergunta, tudo era possível. Parecia ter-se instalado uma folie a deux entre nós e eu não sabia como parar o carrossel. Olhei o relógio. Faltavam 10 minutos para a hora combinada.
“Foi a minha esposa, nos meus anos. Se quiser comprar, vendo barato”. – Respondi eu, levantando-me e tirando umas moedas do bolso para pagar a despesa.
“Acredita nas coincidências, no acaso, em momentos irrepetíveis da nossa existência?”
Estava à espera de tudo hoje, menos de esoterismo nas Avenidas Novas.
“Acredito em tudo o que você quiser, desde que me deixe ir embora. A sua despesa está paga.” – Respondi, pegando na pasta de couro que repousava ao meu lado.
“Hoje de manhã quando acordei senti-me tão só, tão morta... Como nunca me tinha sentido... Vesti a minha roupa mais sofisticada, calcei os meus sapatos mais finos, vesti o meu casaco comprado em Manhattan e saí para a rua. Ninguém reparou em mim. E eu queria que reparassem. Que os homens reparassem. Em como ainda posso ser bonita. Em como o meu cabelo ainda pode dançar ao sol. Em como os meus olhos ainda guardam música. Há muito tempo que não amo, que só tenho a companhia de espelhos côncavos, salas vazias e velas fantasmagóricas. Nada me parece real, nem eu... E então no táxi, a caminho daqui, pintei os meus lábios do vermelho mais vivo que consegui encontrar. E disse para comigo mesma que era hoje que ia encontrar um corpo que se colasse ao meu, uma chama que me devastasse como a um bosque impenetrável. E esse corpo, esse homem, seria o primeiro que encontrasse que tivesse vestido uma peça de roupa vermelha. Quero fazer amor consigo até me sentir viva, e depois nunca mais o quero ver. Salve-me... Já não aguento mais estar morta no mundo dos vivos...”
Voltei a sentar-me. Olhei para baixo e a gravata vermelha que trajava aparentou-se com uma língua que pendia, flamejante. O tempo escoava como areia por entre os meus dedos. A razão não estava a ser, de todo, razoável.
“Devia ter trazido a gravata cinzenta... Se calhar tinha passado mais despercebido...” – pensei, abulicamente.
Ela pegou-me na mão.
“Venha comigo... Vamos para a minha casa...”
Já sei o que isto era. Uma vez, quando era criança, a minha professora primária classificou uma cópia minha com um rotundo “Mau”. E disse-me que nunca seria ninguém na vida. Aqui está a consumação da profecia. A praga da velha senhora professora Odete chegava ao seu culminar. Estava à beira de conseguir o emprego mais estável e promissor da minha vida, e uma mulher que eu ainda nem sabia o nome, de lábios encarnados e decote (ou deveria chamar-lhe Dédalo?) acentuado, pedia-me sexo sofregamente.
Mas não, não era isso! Era, com pompa e circunstância, a anunciação da morte! Tanto tempo que esperei por ela, tanto tempo a procurá-la e ela, matreira mas inorexável, como nos contos e lendas antigos, chegava para me reclamar. Não sob a forma de um ente qualquer, inominável e disforme, de hábito negro e foice na mão descarnada, mas sob a forma da tentação, do inescapável. Era o Diabo que me vinha buscar. Ia para o Inferno, ainda por cima. Eu bem sabia que não devia ter bebido água benta daquela vez em que, quando era criança, já não aguentava a sede durante um jogo de bola estival no adro da Igreja.
Esta mulher tinha vindo para me levar. Era a morte que, disforme e nebulosa, me ocupava o espírito nas últimas horas da noite e nas primeiras da manhã. E eu, que tanto tinha ansiado por ela, que tanto a desejava e romantizava, via-a surgir num corpo feminino. Era óbvio. E como iria ela ceifar-me? Antes de abandonar por completo tudo o que era real ao meu redor e deixar-me levar por aquelas mãos macias que me arrastavam da escuridão do café para a tarde chuvosa, só consegui perguntar:
“Minha senhora, tem preservativos?”

Kosmische Kosmetik II

Motorik: Motor skill: 2 por 2. Em sucessivas e livres depurações é possível sintetizar a alma musical de Michael Rother. É possivel sintetizá-la, mas nunca contextualizá-la. O guitarrista e teclista co-fundador de colossos musicais como Neu! ou Harmonia, gigantes da inovação musical alemã dos anos 70 e que ainda hoje são refrescantes como da primeira vez que se fizeram escutar, é um músico eclético e ímpar. O álbum Sterntaler, segunda obra a solo datada de 1978, prova-o inequivocamente. Produzido pelo mestre Conrad Plank, aqui se encontram as paisagens e os patchworks que o definem. Rítmos maquinais, como se avançássemos por uma interminável autobahn, ladeada de arvoredo / ladeada de indústria, melodias hipnóticas e uma permanente atmosfera de fuga. Ao real, aos outros, ao nosso lado vulgar...
O disco começa como um prolongamento do mais emblemático dos Neu!. A batida mecânica que dita o ritmo a forçar-nos a entrar na viagem e a guitarra hesitante a abrir caminho, até que um refrão sem voz, feito de um riff magnânimo dá o mote para o que todo o álbum nos oferece: música que é alegre e triste ao mesmo tempo. Que pode ser ouvida como viagem interior nos confins de um quarto escuro, ou a avançar determinadamente por uma estrada inundada de luz. É assim Sonnenrad. Segue-se Blauer Regen, composição esmagada pelas guitarras, suaves mas melancólicas, austeras no minimalismo, mas sempre emotivas. Stromlinien movimenta-nos novamente. Mais uma jornada dentro da nossa mente, melodicamente irrepreensível, que parece permitir-nos olhar a paisagem que se espraia perante nós apenas uma vez, pois é preciso continuar, é preciso que nos movimentemos. É preciso avançarmos em direcção a algo. Sempre. Até ao fim. Eis que chega Sterntaler, peça feita de um deslumbramento quase infantil, pejada de electrónica que quase se respira como uma brisa outonal e cuja melodia é deveras encantatória. É música feita descoberta, um regresso ao despojamento em que o sentir se sobrepõe ao pensar. É impossível definir Fontana di Luna recorrendo a outro termo que não seja o que o próprio título encerra. Um xilofone lunar, uma atmosfera reconfortante, quase um regresso ao útero... mas com um coração que pulsa inexoravelmente. Orchestrion encerra a edição original do álbum, colocando uma vez mais o ritmo no horizonte, como se corressemos em direcção ao Sol mesmo sabendo que não o podemos tocar. Seguem-se 3 faixas na reedição do disco, datada de 1993: Lichter von Cairo, Patagonia Horizon e Südseewellen. Não sendo totalmente descaracterizadas da edição original de Sterntaler, apresentam-se como um complemento maioritariamente electrónico e de cariz ambiental às composições mais sensoriais e emotivas do original. Ideal para quem queira prolongar a viagem onírica ou meditativamente...

5 de novembro de 2008

I Hope They Can


This is our time, to put our people back to work and open doors of opportunity for our kids; to restore prosperity and promote the cause of peace; to reclaim the American dream and reaffirm that fundamental truth, that, out of many, we are one; that while we breathe, we hope. And where we are met with cynicism and doubts and those who tell us that we can't, we will respond with that timeless creed that sums up the spirit of a people: Yes, we can.


Este é, indubitavelmente, um dia histórico. Faço votos que estas palavras do primeiro discurso de Barack Obama como Presidente dos Estados Unidos ecoem pelo futuro e por todo o Mundo e, principalmente, que tenha vencido a tão ansiada mudança. O meu Eu céptico, pela primeira vez há muito tempo, sente um rasgo de ESPERANÇA...

2 de novembro de 2008

Kosmische Kosmetik

O primeiro album de Joachim Ehrig, artisticamente conhecido como Eroc, foi lançado em 1975. Misto de guitarras e electrónica, esta obra apresenta momentos sublimes e ricos em textura e melodia. Após uma breve introdução, chega Kleine Eva, peça avassaladoramente bela na sua simplicidade e minimalismo e que, à medida que se vai revelando, nos pode transportar cada vez para mais longe ou fazer-nos retornar a um ambiente in utero. Uma autêntica miríade hipnótica de sons que funciona como uma canção de embalar cósmica e convida à meditação. Músicas como esta poderiam durar para sempre... O tom prossegue com Des Zauberers Traum, que parece suspender-nos no espaço e no tempo e faz-nos sentir como serpentes à mercê de um qualquer encantador. O encantamento quebra-se, contudo, com a chegada de Die Musik Vom "Oldberg", em que Mozart parece encarnar num sintetizador dos anos 70 e nos agarra num breve e repentino vaudeville electrónico. Surge em seguida Chaotic Reaction, interlúdio preenchido por tambores africanos frenéticos, colagens sonoras e um orgão jazzístico que irá desembocar na guitarra refrescante e planante que preenche a belíssima Norderland. Segue-se o experimentalismo de Horrorgoll, pleno de ambientes sombrios, sobreposições electrónicas e vozes sampladas, que nos confronta pela primeira vez com o sonho mau que podemos ter mesmo adormecendo no paraíso. Sternchen, faixa onde a guitarra impera novamente, parece voltar a transportar-nos para um mundo distante, fazendo-nos levitar para depois nos mergulhar num mar de reverb. Segue-se Teenage Love '69, cujo título diz tudo. Uma guitarra ensolarada e sentida provoca reminiscências de um amor há muito vivido, do mistério da descoberta de outros lábios e de outra pele, da nostalgia da perda da inocência. Talvez o mais teutonicamente parecido com saudade... E o sentimento de nostalgia prossegue com Abendfrieden, mais uma peça de música tão poderosa quanto frágil, breve mas penetrante. Ostergloingg parece tentar remendar memórias de um Verão há muito passado, soando a música feita com instrumentos quebrados e o disco chega ao fim com Andromeda, despedida feita sem preparação prévia e atabalhoada como são quase todas. Soa a partida, mas também ao princípio de algo. Algo que parece brilhar...

Poema para S. III


Se
Numa noite em que a Lua não brilhe
Te sentires triste
Não chores
Eu estarei contigo
Para secar qualquer lágrima com um beijo
Para te abraçar até que a glória da manhã nos invada

Se
Um dia ao olhares o espelho
Sentires que o tempo sulcou o teu rosto
Não o quebres
Eu estarei contigo
Para te dizer o quanto és linda
E que te amarei para toda a eternidade

Se
Numa noite em que o silêncio pese
Te sentires só
Não sofras
Eu estarei contigo
A tua cabeça no meu ombro
A minha mão nos teus cabelos
A encher-te de mil cuidados

Se
Num dia de Inverno
O gelo entrar no teu coração
Não tremas
Eu estarei contigo
Inventarei fogo para ti
Rasgarei a minha pele
E cobrir-te-ei com ela para te dar calor

Dawkins

Esta é, seguramente, a melhor peça ensaística que li este ano. Do mesmo autor, já tinha lido e apreciado bastante O Gene Egoísta, mas A Desilusão de Deus surge como uma obra sóbria, lúcida, acutilante e até bem-humorada na forma como aborda a polémica (ou talvez não?) questão dos malefícios da religião. Evolucionista e ateu convicto e militante, Richard Dawkins afirma pretender que todos os leitores da sua obra abandonem as suas religiões a favor do ateísmo. O objectivo afigura-se difícil, mas este livro é escolha obrigatória para quem se interessa por religião, para quem se interessa por ciência e para quem realmente PENSA. Aqui fica uma apresentação onde Dawkins aborda os principais fundamentos da sua teoria. Quem espera encontrar Satanás em pessoa, talvez se surpreenda ao encontrar um gentleman simpático, bem-disposto e carregadíssimo de RAZÃO...

17 de outubro de 2008

Bananaman

A música de Kevin Ayers parece sempre ter assentado no mais puro hedonismo. Membro da primeira formação dos Soft Machine, Ayers encetou uma carreira a solo no final dos anos 60, lançando o seu primeiro álbum, intitulado Joy Of A Toy, em 1969. Desde logo, a sua música deu mostras vincadas de ser uma mistura entre melodias folk bucólicas, mas carregadas de psicadelismo, e de um surrealismo irónico e, por vezes, inusitado, como se os emergentes Monty Python dessem uma ou outra dentada nas canções. Cantor do vinho, da comida, das mulheres e de outros prazeres terrenos que lhe surjam à mente, Kevin Ayers representa uma visão romantizada de um certo tipo de decadência tipicamente europeu, bem como um intérprete de canções acerca de substâncias ilícitas em tom de trovador medieval. Em álbuns divinais como Whatevershebringswesing ou Bananamour, encontramo-nos perante um festim dionisíaco nos bosques da Cornualha. Músico errante, nunca obteve o reconhecimento merecido do grande público. A sua laid-back posture nunca lhe permitiu competir por um lugar na 1ª divisão de cantautores, tal como o comprova o novo álbum The Unfairground, lançado em 2007, 15 anos depois do seu último longa-duração... Mas nada melhor para véspera de fim-de-semana que uma injecção de hedonismo em voz de barítono...

16 de outubro de 2008

Corbijn


É sabido que uma imagem vale mais que mil palavras... Caso flagrante é o de Anton Corbijn. Fotógrafo e realizador há mais de 30 anos, constitui um dos raros exemplos em que um artista não precisa de assinar a sua obra para identificar-se como autor. Basta criá-la. Convido-vos a dar uma espreitadela ao site http://www.corbijn.co.uk/ para conhecer ou voltar a apreciar o seu estilo inconfundível e de esteta por detrás da imagem de algumas das maiores bandas e intérpretes da música popular da actualidade. Este homem até conseguiu que Paul David Hewson aka Bono parecesse cool...

15 de outubro de 2008

Re-fazer, re-modelar...

Hoje recebi um e-mail que me prendeu a atenção. Tanto que decidi transcrevê-lo aqui. Foi-me enviado por um amigo e não sei quem é o autor do texto. Mas as palavras falam com tal acutilância e desconfiança acerca do mundo de hoje, que bem poderiam constituir o reflexo do pensamento de qualquer um de nós. Termino a transcrição com um exemplo paradigmático do que me apetecia que acontecesse. Seria tão bom destruir o que está podre e nos vai apodrecendo sem querermos...

3 000 000 000 000, é o número de euros que vão ser gastos a salvar da bancarrota os bancos do mundo inteiro. De facto, tivemos alguma dificuldade em perceber qual a verdadeira designação em português desta brutalidade de algarismos, mas a conclusão é de ser um total de três mil mil milhões de euros, ou como os americanos gostam de dizer, 3 triliões de euros.
Valor que chegaria para comprar todo o ouro existente à face da terra a preços de hoje e com o que receberíamos de troco ainda conseguir comprar a Suécia.
Por isto tudo devemos estar contentes, muito contentes. Queixamo-nos sempre de temros políticos que nunca fazem nada e afinal, mesmo no seio da maior crise financeira de sempre, eles fizeram alguma coisa. Não percebemos muito bem o quê nem para quê, mas certo é que algo foi feito.
Resta então saber de onde virá esta quantia inaudita que felizmente nos salvará a todos de sermos obrigados a assistir ao triste espectáculo de vermos banqueiros a lavar pratos em restaurantes ou a pedir na Rua do Carmo.
Existem três fontes possíveis e dessas três duas parecem-nos inviáveis. Aumentar os impostos para conseguir tal barbaridade de dinheiro só se vendessemos todos a nossa alma ao diabo, isto é, ao estado e deixassemos de nos alimentar durante centenas de anos, o que não parece ser uma hipótese, embora vontade não devesse faltar pelas bandas de quem anda na política.
Pedir emprestado é também um contrasenso pois não haveriam ninguém a quem o fazer.
Resta apenas uma única solução que é a de imprimir mais notas, se necessário colocar as tipografias a rolar 24 horas por dia até satisfazer as necessidades do mercado, perdão, dos banqueiros. Parece-nos este ser o mais lógico caminho a tomar, levando-nos inexoravelmente ao aumento brutal da inflação quer aqui quer nos EUA. De facto, deste modo, o colapso do dólar que para muitos parecia afastado volta a surgir como um cenário bastante provável . Deixemos pois passar o período das eleições americanas e veremos o que vai acontecer.

Depois deste mistério resolvido nas nossas cabeças, vem outra pergunta de algibeira. Afinal qual a razão de ser preciso este dinheiro para salvar banqueiros?
Com a economia a colapsar, famílias inteiras sem conseguir pagar as suas contas, a criminalidade a subir em flecha e o desemprego sem dar sinais de tréguas, porque raio é que é assim tão importante salvar os bancos?
Dizem-nos então lá de cima que a teoria desta jogada é a de encorajar novamente os bancos a emprestarem dinheiro e assim não estagnar toda a economia que do crédito depende. É esta a história oficial e por uma vez na vida nós acreditamos nos políticos.
Bastou aos banqueiros deixarem de emprestar dinheiro para activar o modo de pânico dos políticos que por sua vez entregaram gratuitamente dinheiro a rodos para que nas próximas eleições ninguém seja acusado de fazer encolher a sua economia. Portanto, trocado por miúdos, os banqueiros deixaram de emprestar dinheiro, fazendo de reféns toda a economia mundial e apenas voltando à sua actividade normal quando os políticos em pânico de perderem popularidade nos seus respectivos países pagaram o resgate que os banqueiros bem entenderam, neste caso, os 3.5 triliões de dólares.
Pensando bem na forma como esta extorsão vai beneficiar os Zés e os Silvas que precisam de pagar as suas contas e não têm dinheiro, a conclusão é simples: não vai.
Às palavras de ordem de que é preciso salvar os banqueiros urgentemente, respondemos que o mundo não são só gordos banqueiros, mas também o cidadão comum que se vai contentar com míseras ajudas e com a quase garantia de que não vai perder tudo. E a PJ não investiga.
A juntar-se ao coro de economistas e políticos do sistema que insistiam em atirar a culpa para o cidadão comum que fosse levantar as suas poupanças e colocá-las debaixo do seu colchão, também os opinion-makers da nossa TV se esforçaram ao máximo em culpabilizar o mero cidadão que entrasse em pânico, dizendo que o sistema colapsaria devido à estupidez de alguns que resolveram salvar as poupanças que tanto custaram a ganhar.

Disseram-nos que deveríamos confiar no sistema bancário cegamente com as nossas poupanças, e que se não o fizessemos poderíamos ser acusados de traição à pátria por precipitar o colapso do sistema financeiro nacional.
Mas ninguém disse que o problema inicial, e pelo qual todos temos de pagar triliões dos nossos bolsos para o resolver, foi o de os próprios bancos não confiarem uns nos outros com os seus recursos. Se os bancos não confiarem uns nos outros são presenteados com o nosso dinheiro de borla, se por essa mesma razão nós não confiarmos nos bancos, podemos até ir parar à prisão, como aconteceu com algumas pessoas que falaram abertamente do possível colapso de um ou outro banco.
Contra a corrente afirmamos que quer haja ou não motivos para isso, devemos poder levantar as nossas economias a qualquer momento, o dinheiro é nosso e é por isso um direito que nos deve assistir. E devemos poder faze-lo sem quaisquer sentimentos de culpa pelo possível colapso do sistema mal amanhado de ínicio.
Alertamos pois para uma falha gravíssima do sistema que poucos se apercebem e que quando chegar ao domínio público, amanhã ou daqui a 300 anos, pode quase decerto arruinar por completo a estrutura bancária mundial. Esta falha deve-se a algo que é endémico ao sistema desde a sua concepção, quando os banqueiros não passavam de cambistas nos finais do século XVIII.
Cada banco tem por obrigação ter por reservas efectivas em dinheiro cerca de 10% do capital que tem a girar no mercado. Para os mais desatentos, este número pode significar que os bancos, na sua totalidade, devem possuir em reservas monetárias um mínimo de cerca de 10%. Nada mais longe da verdade.
É que de cada vez que um banco empresta dinheiro, e, grosso modo, pode faze-lo até um total de 9 vezes mais do que as suas reservas mínimas, gera um depósito noutra instituição bancária, que vai contar para as suas próprias reservas mínimas.
Em linguagem acessível, se todos pensávamos que eram os governos e os bancos centrais que decidiam criar ou não dinheiro, este sistema revela-nos que isso assim não se passa.

Imaginemos um banco A que tem de reservas 100, logo poderá emprestar até 1000, o que significa que "criou" 900 unidades de moeda com autorização do banco central. Só que estes 900 vão ser emprestados a clientes que os vão usar para variados fins, como comprar casa ou ir ao jardim zoológico. Então, estes 900 passam da conta dos clientes do banco A para as contas das pessoas a quem estes compraram as coisas, possivelmente num banco B.
Logo, estes 900, criados do nada, vão servir de reservas reais para os outros bancos, como no banco B, que por sua vez poderá emprestar mais nove vezes o seu total. Rapidamente, estes 900 se tornam em 9000, pois são reservas reais dos bancos B e que sucessivamente podem ser depositados nos bancos C, gerando 90000 de crédito. Tudo isto com apenas 100 unidades efectivamente criadas com autorização.
Este é o problema actual, existe muita coisa virtual e pouca real.
Quando o crash e a grande depressão de 1929 aconteceram, apenas 0,1% da economia era virtual, sendo os outros 99,9% reais da economia produtiva, como fábricas, agricultura, etc.
Hoje em dia, numa crise que parece já ser bem mais grave do que a destes remotos tempos, a situação inverteu-se por completo e menos de 0,1% pertencem à categoria de bens reais. Podemos então imaginar a cascata de colapsos que se podem esperar no futuro próximo.
As próximas crises a atingirem como um relâmpago virão do sector de derivados, automóvel e segurador.
Infelizmente a questão já não é saber se a crise chegará ao cidadão comum com a mesma violência de tempos mais idos, mas sim saber quando é que isso vai acontecer.
Entretanto, e com tantas impressoras de fazer notas a funcionar, achamos que o dólar vai rapidamente voltar ao lugar de onde saiu há poucos meses, o fundo.


9 de outubro de 2008

25 Sons para o Outono


Uma mão-cheia de álbuns intemporais e/ou melancólicos e/ou introspectivos para a estação dourada de 2008. A escolha é eclética e subjectiva, a ordem é aleatória, todos são magníficos...

1. Beth Gibbons & Rustin' Man - Out Of Season

2. David Sylvian - Secrets Of The Beehive

3. Nick Drake - Five Leaves Left

4. Red House Painters - Red House Painters (1993)

5. This Mortal Coil - Filigree & Shadow

6. Cocteau Twins - Treasure

7. Klaus Schulze - Timewind

8. Interpol - Turn On The Bright Lights

9. Pearls Before Swine - Balaklava

10. John Cale - Paris 1919

11. Scott Walker - Scott III

12. Talk Talk - Laughing Stock

13. Brian Eno - Another Green World

14. Joy Division - Unknown Pleasures

15. Bonnie "Prince" Billy - I See A Darkness

16. Radiohead - OK Computer

17. David Bowie - Low

18. Robert Wyatt - Rock Bottom

19. Walter Wegmüller - Tarot

20. Dead Can Dance - Spleen And Ideal

21. Peter Hammill - Over

22. Sigur Rós - Ágaetis Byrjun

23. Leonard Cohen - New Skin For The Old Ceremony

24. Tangerine Dream - Stratosfear

25. Dom - Edge Of Time

Enofilia

Brian Eno, ou se preferirem o nome completo, Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno, é um génio. Pelo menos para mim. Longe vão os tempos em que este não-músico assumido envergava plumas e lanteloujas e assegurava a estranheza e o experimentalismo sonoro nos Roxy Music. O verdadeiro Man From Mars do início da década de 70...
Desde então, e exceptuando alguns trabalhos bombásticos como produtor (o que seria dos U2 sem ele?), Eno tem-se tornado o maior expoente da "música discreta". Elemento fulcral na procura de novas linguagens e de novas possibilidades musicais, a sua busca tem-no levado nos últimos anos ao conceito de música concebida para computadores - Música Generativa.
Caí na tentação de colocar aqui um ensaio e uma entrevista, ambos do século passado, mas sempre à frente das tendências vigentes, em que Eno disseca o seu trabalho e algumas temáticas pertinentes da música moderna. E este homem sabe sempre muito bem o que diz, ou não fosse ele o autor da célebre citação "Culture is everything that you don't have to do."...


Dreamworld

O artista belga Luc Pilmeyer faz com lápis de cor e tinta da china aquilo que estamos habituados a ver em telas pintadas a óleo. A sua obra assenta numa espécie de surrealismo cósmico com laivos psicadélicos, muito apelativa na cor e nas formas. Não resisto a deixar aqui o seu site, onde se podem apreciar algumas das suas obras. Os desenhos são melhores que as fotografias e, apesar de não serem muito grandes, dão um bom vislumbre do mundo de sonho que Pilmeyer consegue criar. Ideal para colorir a música dos Gong, Cosmic Jokers ou dos Pink Floyd entre 67-72...


6 de outubro de 2008

10 Alentejanos


A chegada de uma nova semana deixa-me sempre com a nostalgia do dolce fare niente pós-almoço de sábado à tarde... Apetece-me enumerar os últimos 10 melhores tintos alentejanos que bebi nos últimos meses, para exorcizar os fantasmas dionisíacos que me acossam. Haverão melhores certamente, mas o momento e a companhia fizeram destes néctares inolvidáveis. A beber com urgência, pois a vida é curta...


1. Pêra Manca 2003


2. Terras de Zambujeiro 2001


3. Herdade do Perdigão Reserva 2003


4. Cortes de Cima Syrah 2004


5. José de Sousa Tinto Velho 1997


6. Herdade do Peso 2003


7. Herdade Fonte Paredes Reserva 2005


8. Caladessa 2001


9. Casa de Santa Vitória Reserva 2006


10. Vinhas da Ira 2005

Poema para S. II



Não sei o que sou
Mas sou teu
Mesmo sabendo que tu já sabes
Quero-te
Quero o teu toque
Quero os teus lábios
Quero o teu amor
Abranda
Quando te cruzares comigo
Passa através de mim
Devagar
Deixa-me viver de instantes
Que mesmo supérfluos
São perpétuos
E me fazem despertar
Um olhar
Os teus olhos
Misteriosamente serenos
São um manto no frio da noite
O refúgio na tempestade
A última coisa que quero ver
Quando a morte se erguer
Eu caço pela tua pele
Passo fome pela tua boca
Não vás
Nunca vás
Não me deixes amar
Outra sem seres tu
Não me deixes pecar
Por outra sem seres tu.

5 de outubro de 2008

Poema para S.


Passa por mim outra vez
Com o teu vestido de Verão
Passa infinitamente ante os meus olhos
Até que o horizonte se perca em ti
E o mundo pare de girar para te contemplar.

Deixa-me segredar-te o quanto estás linda
Banhada pelo Sol da tarde
O desejo de possuir-te é uma ferida
Latente no meu peito
E que o teu olhar faz sangrar.

Se é isto o amor
Se és tu quem eu sempre procurei
Peço a este poema que voe até ti
E te traga para ficar.

4 de outubro de 2008

Oh Well...

O Outono chegou, sem surpresas... A noite, as ruas, serão ainda convidativas? Serão sempre, dirão alguns... Eu fico entre paredes, a deleitar-me com delírios progressivos como este dos holandeses Focus. A guitarra supersónica de Jan Ackerman e o yodel à beira do colapso de Thijs van Leer são o que mais se aproximam do meu estado de espírito actualmente. E talvez não esteja sozinho...

3 de outubro de 2008

Oh My...

Há muitas coisas que podem contribuir para melhorar uma sexta-feira. Enumerá-las é fastidioso. Especialmente quando acordamos com a vitória do Benfica ainda a latejar-nos na mente. Há coisas simples que podem tornar um dia perfeito, mesmo que seja a perfeição de um pedaço de latão banhado a ouro. A pura classe de Reyes, vencer uma equipa italiana, um treinador racional... há muito que não via tanta sobriedade no meu Benfica. Esperemos que dure. Ou, melhor ainda, que não acabe. Que estes homens sejam heróis por bem mais que um dia! Que Bowie me perdoe o sacrilégio, mas uma canção de amor pode ser um quadro em branco onde cada um pinta o que sente... Viva o Benfica!

2 de outubro de 2008

Oh No...

Nestes tempos de Euribor assustadoramente imparável e petróleo obscenamente caro, já nem a salvação norte-americana podemos esperar. O porquinho de loiça que contém a "maior economia do mundo" está rachado e esperemos que não acabe em cacos. Desta vez, não é a América que emerge prosperamente como farol do mundo. É a América que precisa de ser salva.
Velhos e saudosos tempos em que havia alguém que se insurgia, que escandalizava, que escapava à modorra vigente. Hoje, o silêncio dos bons continua a ser incompreensível perante a gritante injustiça de que são alvo. Ocorreu-me que já não há homens nem bandas como Iggy Pop e os Stooges. Pelo menos à vista. Na sombra, sem coragem nem ânimo para ousar pensar e agir, existirão muitos. Este homem que despeja manteiga de amendoim sobre o seu corpo daria um bom candidato à Presidência dos Estados Unidos. Só para que algo de novo acontecesse. Só para que a vontade de revolta e de mudança não fosse uma nota de rodapé na minha geração. No fim ganharia Obama, obviamente. A loucura tem limites. Mas é saudável saber que existe. Todos deveriam saber que o punk não nasceu na Inglaterra. Nasceu na América em 1969 com estes senhores.


Oh Yeah...

Can... Será que alguém ainda os ouve? Será que alguém os ouviu realmente? Esta peça inovadora e imortal continua a revolver os meus neurónios. Continua a ser o reflexo de uma música genial e sem compromissos onde Stockhausen, os Mothers Of Invention e os Velvet Underground parecem fundir-se para criar algo de tão novo e estimulante que, passados mais de 30 anos ainda mantém a estranheza e o deslumbramento original. A bateria do assombroso Jaki Liebezeit, o verdadeiro Mann Maschine, o baixo do mítico Holger Czukay e as vocalizações ad lib de Damo Suzuki preenchem o magnífico álbum Tago Mago. O Krautrock será sempre uma constante deste espaço, pois nunca a música denominada popular foi tão livre de amarras e aberta a novas experiências. O resultado: ARTE musical no mais puro sentido do termo, assente na sensação, no prazer da interligação e na libertação do improviso...