18 de agosto de 2011

Dieta Mediterrânica X

O nome Riccardo Zappa leva, inconscientemente, a uma busca mental pela árvore genealógica que o ligará forçosamente a Frank Zappa. Mas o italiano e o americano apenas comungam do amor pela guitarra. E nem nisso são unânimes, pois o Zappa gringo foi um virtuoso da guitarra eléctrica e o Zappa transalpino é um virtuoso indefectível da guitarra acústica.
Separado assim o trigo do joio, nada como apreciar em toda a sua plenitude o primeiro álbum deste artesão das seis cordas, ainda em actividade. Celestion, disco de 1977, surgido em pleno declínio da fase de ouro do Rock Progressivo italiano, é uma obra nada decadente e onde classicismo e modernismo se unem. Totalmente instrumental mas não totalmente um solilóquio, abrange com enorme originalidade as diversas facetas e possibilidades da guitarra acústica. Frammenti é o trecho mais expansivo de todo o álbum. Uma peça que transcende os dez minutos e que expõe uma guitarra pejada de efeitos, que não encobrem a mestria. A tradição italiana de melodias a roçar o divino sem serem necessariamente sacarinas, impõe-se. Um intermezzo congrega a banda que acompanha Zappa e transforma-se numa estranha excursão rock, liderada por uma guitarra acústica electrizante. Ao rumar para o destino, Frammenti volta a ser clássica, a guitarra a soar como o sopro de muitas eras.
Tre e Quattro Quarti enceta a mesma viagem que o tema anterior, mas encurta os passos. A vertente clássica transborda com intenção redobrada, assim como a reviravolta rock acentua a energia. Uma bizarra ponte entre arcaísmo e modernismo. Segue-se o tema-título, a confirmar que estamos perante um disco de grande beleza e não apenas um disco de um grande guitarrista. Ela, a guitarra, soa aqui como um objecto surreal, a raiar o electrónico. Quando a bruma se dissipa e deixa vislumbrar os traços do rock, ficamos perante um imaginativo exercício, em que o baixo gordo e a bateria algo funky administram um raro exotismo à hegemonia da guitarra.
Sonata Mediterranea é uma brisa morna e suave de folk italiana, que apetece ouvir junto ao Lago di Garda ou nas costas da Sardenha. Na companhia certa, pode ter efeitos afrodisíacos...
A última cascata de guitarra materializa-se em Mirage. A toada é a mesma que ficou para trás. Acrescente-se uns lampejos que trazem à memória o mais pastoral de Mike Oldfield e poderíamos estar numa versão transalpina da cena de Canterbury.
Riccardo Zappa é visto hoje em dia como um dos maiores (e melhores) guitarristas clássicos de Itália. Infelizmente, criatividade e virtuosismo parece terem seguido caminhos separados e a sua música há muito que não deslumbra como nas primeiras obras. Celestion pode, assim, ser considerado um dos últimos estertores da música de superlativa qualidade produzida na Itália dos anos 70. Devia haver um museu para exibi-la e conservá-la.

17 de agosto de 2011

Jazz a Gosto



Já lá vão uns mesinhos, mas nunca é demais enaltecer a consagração da lusitana Clean Feed como uma das melhores editoras de jazz do planeta. Até porque, neste ano de 2011, cumpre-se o aniversário da primeira década da sua existência. A mutação da Clean Feed entre pequena editora e referência do jazz deveu-se muito à incorporação e divulgação de projectos internacionais no seu precioso catálogo. O encontro entre músicos nacionais e estrangeiros e a realização de eventos jazzísticos pelos caminhos de Portugal é outro dos alibis da editora para vir oferecendo excelentes discos desde The Implicate Order "At Seixal" até ao recente European Movement Jazz Orchestra Live in Coimbra.
Muito graças à Clean Feed, o novo jazz em Portugal está vivo e recomenda-se. Poucos foram os períodos em que residentes nas moradas do culto ou da vanguarda visitaram este cantinho à beira-mar plantado. Exploradores temerários como Peter Evans ou projectos promissores como Mostly Other People Do The Killing são passíveis de aparecer numa sala perto de si. É a regionalização do jazz, levada a cabo pela editora lisboeta. Um caso sério de qualidade e sucesso em tempos de depressão luso-generalizada. É aconselhável uma visita demorada à Trem Azul, possivelmente a melhor loja da capital dedicada ao jazz e que guarda todo o catálogo da Clean Feed. Esse catálogo pode ser consultado aqui. Algumas notas soltas sobre peças desse catálogo estão disponíveis aqui.

Liturgia Cósmica

First they came with bombs, now they come with synthesisers. Esta foi uma das expressões que os britânicos soltaram aquando do concerto dos Tangerine Dream na Catedral de Coventry. Em 1940, o sumptuoso monumento e grande parte da cidade foram destruídas pela aviação alemã. Agora, em 1975, os germânicos voltavam sob a forma de três misteriosos músicos que invadiam o local sagrado com o seu psicadelismo cósmico.
A filmagem do evento que ficou para a posteridade não mimetiza o concerto em si. Realizada magistralmente por Tony Palmer, consiste numa montagem de som e imagem, em que a música transcende o espectáculo e se torna uma cinestesia do espaço onde é tocada. O lendário concerto dos Tangerine Dream na Catedral de Coventry consegue ser visualmente esmagador, com as pedras, vitrais e tapeçarias a reflectirem a flutuante e espacial atmosfera do trio. Musicalmente, esta é também uma excelente oportunidade para apreciar os Tangerine Dream numa das suas melhores encarnações (Edgar Froese, Peter Baumann e Chris Franke) e num período fértil de criatividade (rodava por estes dias o belíssimo Ricochet). Documento histórico e irrepetível nestes moldes, permite um olhar abrangente aos primórdios da música electrónica e à forma arcaica mas romântica como era posta em prática. Permite igualmente a veneração dos mestres, conservados para sempre entre as quatro paredes do templo. O culto tornou-se infinito.



16 de agosto de 2011

Melofobia Moderna



Fear of Music: Why People Get Rothko But Don't Get Stockhausen é a mais recente provocação literária de David Stubbs. Este ensaísta e jornalista britânico, conhecido sobretudo pelos seus escritos nas revistas Wire e Uncut, assina agora um interessante livro sobre a dualidade de critérios e apreciações na arte moderna.
Stubbs parte da noção que obras de arte de grande abstraccionismo e experimentalismo em áreas como a pintura ou a escultura, são fonte de agrado e apreço para um número de pessoas muito elevado. Há quem pague fortunas por quadros de Mark Rothko e se perca embevecidamente a contemplar esculturas de Henry Moore. Porém, é bastante mais raro assistir ao genuíno êxtase de um ouvinte presenteado com uma obra de Karlheinz Stockhausen ou John Cage. A vanguarda e a audácia residem em todas elas, mas a recepção calorosa não se estende muitas vezes à música. Essencialmente, todas derivaram da mesmas correntes e beberam das mesmas influências (minimalismo, impressionismo, dadaísmo...), mas a música contemporânea mais arrojada continua a não atingir o mesmo estatuto. Será que os ouvidos são mais exigentes que os olhos? Será que o prazer sensitivo e a comunicação das artes variam de receptor para receptor? E a subjectividade? Reside em nós ou no objecto que admiramos, seja ele um quadro, uma fotografia ou uma peça de Xenakis?
Fear of Music é um livro que, mais que dar respostas, levanta questões. Pode parecer (e é) algo curto na vastidão da temática que procura esquadrinhar. Mas pode perfeitamente abrir caminho a mais investigações nesta matéria, principalmente ao nível da Psicologia. Quiçá não irei lá meter a colherada...

15 de agosto de 2011

Texas Us

Feel good music. Esta é a melhor definição para a sonoridade aprazível dos Sir Douglas Quintet. Activos durante mais de 30 anos, praticamente até à morte do líder Doug Sahm em 1999, estes texanos foram mestres no corte e costura de diversos estilos musicais americanos, na criação de patchworks sonoros onde blues, country, tejano e rock recebem tratamento VIP. Mendocino, segundo fôlego da banda lançado em 1969, é o exemplo perfeito do seu aveludado musical, sempre sedutor mas nunca boçal.
A música de Mendocino agarra-se com unhas e dentes às suas raízes, possui uma ruralidade vintage, um orgulhoso despretenciosismo. É música feita para nos dar prazer, especialmente em tempos de Verão. É seriamente aconselhável seguir as palavras de Shawn Sahm, filho de Doug Sahm, escritas propositadamente para a reedição do disco: "... kick back, get something cool to drink and prepare yourself for a Tex Mex trip like no other". A premissa cumpre-se logo no primeiro tema. Mendocino empurra-nos para uma qualquer festarola numa qualquer terreola da fronteira entre o México e as Américas. Órgão periclitante e roufenho, ritmo a direito e uma melodia esplendidamente desavergonhada. Canção para cantar alto, bater os pés na terra e esvaziar shots de tequila. A extroversão pulula pelo álbum, em temas tão espontâneos que parece terem sido compostos e gravados de uma assentada. She's about a Mover e I Wanna Be Your Mama Again fazem-nos sentir na sombra amena de um tesco, abrigados do sol impiedoso do deserto. And It Didn't Even Bring Me Down coloca mariachis a soar como um disco da Stax e a casa da country abre as janelas para deixar entrar uma lufada de ar fresco texano em If You Really Want Me to I'll Go.
Para além do clássico tema-título, as grandes composições do álbum são as que fluem lentamente, como um calmo entardecer. Eis o belíssimo I don't Want, o arrastamento dolente de At the Crossroads e a majestade sulista de Texas Me.  
Reeditado em 2002, Mendocino acrescentou mais seis temas à colheita original. Por entre as costumeiras versões alternativas, destacam-se as revelações The Homecoming e a sentimental Sunday Sunny Mill Valley Groove Day. Uma versão do filme Aquele Querido Mês de Agosto rodada no Texas teria certamente a banda-sonora assegurada pelos Sir Douglas Quintet. E isto é um elogio. Tex Mex style...

7 de agosto de 2011

San Francisco Serenade

Chet Powers escolheu o nome artístico Dino Valenti no princípio da sua carreira. Posteriormente, na banda que ajudou a fundar - os Quicksilver Messenger Service - passou a chamar-se Jesse Oris Farrow. Este estranho desdobramento de pseudónimos parece dever-se à divisão do músico entre vários projectos, à procura de uma identidade diferente em cada criação.
O único registo a solo deixado pelo californiano veio complicar um pouco mais a sua identificação. Um erro da editora fez com que o seu nome aprecesse como Dino Valente. 1968 foi o seu ano. Se o nome artístico parece remeter superficialmente para algo entre o mafioso e o intérprete de canções napolitanas numa trattoria de Little Italy, o conteúdo engana redondamente. Este é um disco de excepção, um tesouro perdido que poucos contemplaram e menos resgataram para o presente. Longe do rock psicadélico dos Quicksilver Messenger Service, Dino Valente é um disco orgulhosamente folk. Do mar e não da terra. A obra de um baladeiro com os poros entupidos de sol e sal, com a alma assombrada pela doce melancolia de um Verão que nunca dura. De um homem que viveu atrás das grades e de um pioneiro a quem chamaram the underground Bob Dylan...
As belíssimas e emotivas canções raramente transcendem a fronteira acústica. Arranjos de sopro e brisas de piano agitam My Friend e uma cascata orquestral tomba sobre a sublime Tomorrow. Uma bateria esparsa e gotas de cravo preenchem o não menos soberbo Time. De resto, erguem-se maioritariamente o trovador Dino e a sua guitarra, completando-se um ao outro, aconchegando-se mutuamente. E mais não é preciso, quando ruminações românticas e dolentes como Something New, Listen To Me ou New Wind Blowing param o tempo e salvam-nos, por momentos, do mundo real. À história de Me and My Uncle poderíamos chamar algo como outlaw folkChildren of the Sun guarda algum bucolismo psicadélico e Test vem terminar a edição original do álbum em expedição psicadélica explícita, mostrando que o baladeiro nunca deixou de ser um dos pais desta corrente.
Dino Valente é um disco com uma exposição bem mais reduzida que aquela que merece. É um exemplo perfeito do som de San Francisco nos finais dos anos 60, esse som pacífico e solarengo, em que uma acalmia algo triste se projecta no azul do céu. Reeditado em 2004, acrescentou Shame On You Babe e Now and Now Only aos dez temas originais e enfatizou uma vez mais o excelente escritor de canções que Chet Powers (o homem) foi. Justiça fosse feita (e um pouco menos de dedicação à marijuana...) e a sua obra-prima a solo seria falada na mesma dimensão que alguns discos de Tim Buckley, o seu génio composicional no mesmo patamar de Arthur Lee. Este é o único sítio na Internet onde existe um tributo ao músico. É rudimentar, mas funciona como local de culto a um artista que nunca passará disso.

6 de agosto de 2011

San Francisco Jam

É costume dizer-se que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Os californianos Quicksilver Messenger Service surgiram para contrariar esse rebuscado dogma. Rezam as crónicas que Chet Powers (Dino Valenti no meio artístico), o mentor da banda, foi preso por posse de marijuana no dia que se seguiu ao seu primeiro ensaio. Isto aconteceu em 1965, três anos antes dos QSM editarem o seu álbum inaugural. Grupo rodado e habituado ao pó da estrada, chegou a 1968 sem o fundador, mas num misto de frescura e experiência, com uma sonoridade distintiva que os transformou num dos pilares do psicadelismo da West Coast.
As raízes clássicas e folk da banda provocam uma reacção química perfeita ao entrarem em contacto com o rock psicadélico do seu primeiro registo. Quicksilver Messenger Service é uma genial súmula do som californiano dos anos 60. Um som vagueante, ensolarado, música descapotável que circula devagar por imensas estradas desertas. Intercalam os temas mais directos (Light Your Shadows, Dino's Song) com psicadélicos sonambulismos ao sol (a longa jam ácida de The Fool e o excelso Gold and Silver). É nestas composições mais soltas que se revela o verdadeiro carácter e o real talento dos QSM. Essencialmente graças às guitarras em comunhão orgiástica, cujo prazer em dar música comunga do nosso prazer em recebê-la. Mas é a versão electrificada da canção folk Pride of Man que rouba o disco. Melhor que o original...
A tour de force das guitarras retorna em força em Happy Trails, provavelmente o momento definitivo do grupo. O disco divide-se num segmento gravado ao vivo e outro registado em estúdio. O primeiro é um imenso devaneio em torno do tema Who do you Love? do bluesman Bo Diddley. A desgarrada sem amarras, simbiótica, dos dois guitarristas (Gary Duncan e o genial John Cippolina) alucina-nos durante quase meia-hora. A parte gravada em estúdio gerou duas belíssimas criações, o blues rock intoxicado de Mona e o peso astral de Maiden of the Cancer Moon. Calvary, ao que consta, é uma épica jam surgida em plena viagem lisérgica. Soa como tal, na sua introspecção distorcida e no exotismo melódico. Para algo completamente diferente, o disco termina com uma revisitação ao tema da série televisiva Roy Rogers... Happy Trails acaba por ser a prova física de como os QSM eram uma banda de palco, um pouco como os seus contemporâneos Grateful Dead, com um nadinha menos de droga, com um nadinha mais de luz.
Em menos de um ano, o panorama altera-se. Após Happy Trails, o fulcral Gary Duncan abandona o grupo (diz-se que foi percorrer a América de mota...) e o segundo registo editado em 1969 é uma súbita encruzilhada na auto-estrada psicadélica. Shady Grove nunca será um mau disco. Mas coloca os QSM no roteiro das bandas mais convencionais numa altura em que poderiam ter expandido o seu som até ao fim do horizonte. A saída de Duncan parece tê-los deixado como um cão com três patas. Povoado por canções mais contidas no tempo e no espaço, Shady Grove tira do armário os esqueletos da folk e dos blues e cruza-os amiúde, como no tema-título e Holy Moly. Mas também separa a clara da gema, como em Flute Song ou Words can't Say. A estrela da companhia desta feita é o recém-recrutado Nicky Hopkins, pianista inglês e session man de gente como os Rolling Stones e Beatles. O seu estilo escorreito e sofisticado acrescenta ao disco um aroma de honky tonk erudito, especialmente no fabulosamente apurado Edward, The Mad Shirt Grinder.
Dois anos volvidos, Chet Powers (pergunto-me sempre se Cat Power foi aqui buscar o nome...) era já livre como um passarinho. Com um álbum de culto nos ombros, lançado em 1968 sob o pseudónimo Dino Valente, o carismático californiano volta à banda que viu parir. Para complicar ainda mais a sua identificação, adopta o alter ego Jesse Oris Farrow e torna-se o líder da matilha. A folk está no seu ADN e os QSM prosseguem rumo ao ocaso do psicadelismo na sua arte. Pelo menos o mais complexo e extravagante. Just For Love, de 1970, é um eterno disco de Verão. Para o dia e para a noite. Para o bem e para o mal. Produto genuíno da West Coast, ataca a nossa existência com uma deliciosa preguicite aguda. Implora uma praia escondida, uma noite com o mar por perto, um pôr-do-sol em cinemascope... Gary Duncan está igualmente de volta, mas o espectáculo pirotécnico das guitarras é ocultado pelo calor poroso. Just For Love, Pt. 1 e Fresh Air são os flagrantes delitos, o primeiro doce como néctar, o segundo o único sucesso da carreira dos QSM. Um eterno clássico. Gone Again e The Hat são convites irresistíveis ao torpor, ao pecado da gula - seja qual for o objecto de prazer... Cobra mostra um pouco da boogie band que subsiste nos Quicksilver e que sabe sempre a pouco.
O Verão do Amor da banda prolonga-se em What About Me. Igualmente editado em 1970, é um disco muito similar ao seu antecessor, acrescentando sopros em alguns dos temas. Continua a busca por sonoridades mais directas, o que se encontra logo no tema de abertura, manifesto capaz de aliviar uma otite. A aridez dos blues desponta em Local Color e Good Old Rock'n'Roll é exactamente o que anuncia. Mas o álbum acaba por ser mais um caldeirão de canções banhadas pelo sol da Califórnia. Baby Baby, Spindrifter e Call on Me são nomes talhados nas palmeiras, apetece quase vestir uma camisa às flores (uma que não seja muito foleira, vá...) e tomar uns mojitos a olhar o Pacífico. Long Haired Lady é uma típica balada ao estilo Dino Valenti e All In My Mind acrescenta uma tonalidade caribenha às cores quentes da paisagem. Just For Love e What About Me são conhecidos como os álbuns hawaianos dos QSM. Está tudo dito.
Em 1971, a trupe perde dois pesos-pesados: John Cippolina e Nicky Hopkins. Este desfalque e o idílio dos dois últimos discos fazem adivinhar um grupo à beira de cair na auto-indulgência ou a tocar para turistas nos bares de Honolulu. Mas a música é feita de surpresas e o novo registo da banda de Dino Valenti prova que ainda estão a uns valentes anos da reforma. Quicksilver é bastante sólido e está recheado de composições fortes. As infusões de folk sabem melhor que nunca, especialmente em Hope e no divinal Don't Cry for My Lady Love. I Found Love poderia ter saído das mãos do Carlos Santana dos inícios e o genial Fire Brothers é um milagre nesta fase da banda. Um dos melhores e mais vincadamente psicadélicos temas da sua história aparece ao sexto álbum. Que mais se pode pedir? O patrão da 4AD, Ivo Watts-Russell, que sabe muito bem o que faz, incluiu uma versão sombria e quase irreconhecível deste tema em Filigree & Shadow do projecto This Mortal Coil. The Truth fecha o álbum em modo rock descomprometido. Acima de tudo, sente-se o prazer dos músicos que, nesta altura do campeonato, conseguem um disco surpreeendente e que resume a carreira da banda em todas as suas facetas.
Foi sol de pouca dura. Em 1972, Comin' Thru aniquila as esperanças de uns Quicksilver renovados e perenes. À excepção de dois ou três temas (justiça seja feita, California State Correctional Facility Blues ainda entusiasma...), o disco é uma desilusão perante o que tinha sido alcançado há apenas um ano. Para castigo, não ponho aqui a capa.
A banda volta à carga em 1975 e com o line-up original. Desta vez, parte do hype é verdadeiro e os QSM  podem orgulhar-se do que apresentam. I Heard You Singing é boa, Gypsy Lights é melhor, Cowboy on the Run é a melhor de todas. Witches Moon e Bittersweet Love são prazenteiros regressos ao passado, o que constitui o único problema do álbum Solid Silver. Oito anos antes teria sido uma bomba, em 1975 é apenas um estalinho. Foram as melhoras da morte dos Quicksilver Messenger Service. A loja fechou e reabriu em 1986 pela mão de Gary Duncan. Mais valia ter sido demolida. O grupo que existe hoje é apenas um pálido retrato do passado. Uma banda de covers de si própria. Mas, quando chega o Verão, os fantasmas do passado de um dos melhores colectivos de sempre a sair de San Francisco, ícones incontornáveis do psicadelismo, chegam para nos atormentar de forma benfazeja. High Spirits...