É costume dizer-se que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Os californianos Quicksilver Messenger Service surgiram para contrariar esse rebuscado dogma. Rezam as crónicas que Chet Powers (Dino Valenti no meio artístico), o mentor da banda, foi preso por posse de marijuana no dia que se seguiu ao seu primeiro ensaio. Isto aconteceu em 1965, três anos antes dos QSM editarem o seu álbum inaugural. Grupo rodado e habituado ao pó da estrada, chegou a 1968 sem o fundador, mas num misto de frescura e experiência, com uma sonoridade distintiva que os transformou num dos pilares do psicadelismo da West Coast.
As raízes clássicas e folk da banda provocam uma reacção química perfeita ao entrarem em contacto com o rock psicadélico do seu primeiro registo. Quicksilver Messenger Service é uma genial súmula do som californiano dos anos 60. Um som vagueante, ensolarado, música descapotável que circula devagar por imensas estradas desertas. Intercalam os temas mais directos (Light Your Shadows, Dino's Song) com psicadélicos sonambulismos ao sol (a longa jam ácida de The Fool e o excelso Gold and Silver). É nestas composições mais soltas que se revela o verdadeiro carácter e o real talento dos QSM. Essencialmente graças às guitarras em comunhão orgiástica, cujo prazer em dar música comunga do nosso prazer em recebê-la. Mas é a versão electrificada da canção folk Pride of Man que rouba o disco. Melhor que o original...
A tour de force das guitarras retorna em força em Happy Trails, provavelmente o momento definitivo do grupo. O disco divide-se num segmento gravado ao vivo e outro registado em estúdio. O primeiro é um imenso devaneio em torno do tema Who do you Love? do bluesman Bo Diddley. A desgarrada sem amarras, simbiótica, dos dois guitarristas (Gary Duncan e o genial John Cippolina) alucina-nos durante quase meia-hora. A parte gravada em estúdio gerou duas belíssimas criações, o blues rock intoxicado de Mona e o peso astral de Maiden of the Cancer Moon. Calvary, ao que consta, é uma épica jam surgida em plena viagem lisérgica. Soa como tal, na sua introspecção distorcida e no exotismo melódico. Para algo completamente diferente, o disco termina com uma revisitação ao tema da série televisiva Roy Rogers... Happy Trails acaba por ser a prova física de como os QSM eram uma banda de palco, um pouco como os seus contemporâneos Grateful Dead, com um nadinha menos de droga, com um nadinha mais de luz.
Em menos de um ano, o panorama altera-se. Após Happy Trails, o fulcral Gary Duncan abandona o grupo (diz-se que foi percorrer a América de mota...) e o segundo registo editado em 1969 é uma súbita encruzilhada na auto-estrada psicadélica. Shady Grove nunca será um mau disco. Mas coloca os QSM no roteiro das bandas mais convencionais numa altura em que poderiam ter expandido o seu som até ao fim do horizonte. A saída de Duncan parece tê-los deixado como um cão com três patas. Povoado por canções mais contidas no tempo e no espaço, Shady Grove tira do armário os esqueletos da folk e dos blues e cruza-os amiúde, como no tema-título e Holy Moly. Mas também separa a clara da gema, como em Flute Song ou Words can't Say. A estrela da companhia desta feita é o recém-recrutado Nicky Hopkins, pianista inglês e session man de gente como os Rolling Stones e Beatles. O seu estilo escorreito e sofisticado acrescenta ao disco um aroma de honky tonk erudito, especialmente no fabulosamente apurado Edward, The Mad Shirt Grinder.
Dois anos volvidos, Chet Powers (pergunto-me sempre se Cat Power foi aqui buscar o nome...) era já livre como um passarinho. Com um álbum de culto nos ombros, lançado em 1968 sob o pseudónimo Dino Valente, o carismático californiano volta à banda que viu parir. Para complicar ainda mais a sua identificação, adopta o alter ego Jesse Oris Farrow e torna-se o líder da matilha. A folk está no seu ADN e os QSM prosseguem rumo ao ocaso do psicadelismo na sua arte. Pelo menos o mais complexo e extravagante. Just For Love, de 1970, é um eterno disco de Verão. Para o dia e para a noite. Para o bem e para o mal. Produto genuíno da West Coast, ataca a nossa existência com uma deliciosa preguicite aguda. Implora uma praia escondida, uma noite com o mar por perto, um pôr-do-sol em cinemascope... Gary Duncan está igualmente de volta, mas o espectáculo pirotécnico das guitarras é ocultado pelo calor poroso. Just For Love, Pt. 1 e Fresh Air são os flagrantes delitos, o primeiro doce como néctar, o segundo o único sucesso da carreira dos QSM. Um eterno clássico. Gone Again e The Hat são convites irresistíveis ao torpor, ao pecado da gula - seja qual for o objecto de prazer... Cobra mostra um pouco da boogie band que subsiste nos Quicksilver e que sabe sempre a pouco.
O Verão do Amor da banda prolonga-se em What About Me. Igualmente editado em 1970, é um disco muito similar ao seu antecessor, acrescentando sopros em alguns dos temas. Continua a busca por sonoridades mais directas, o que se encontra logo no tema de abertura, manifesto capaz de aliviar uma otite. A aridez dos blues desponta em Local Color e Good Old Rock'n'Roll é exactamente o que anuncia. Mas o álbum acaba por ser mais um caldeirão de canções banhadas pelo sol da Califórnia. Baby Baby, Spindrifter e Call on Me são nomes talhados nas palmeiras, apetece quase vestir uma camisa às flores (uma que não seja muito foleira, vá...) e tomar uns mojitos a olhar o Pacífico. Long Haired Lady é uma típica balada ao estilo Dino Valenti e All In My Mind acrescenta uma tonalidade caribenha às cores quentes da paisagem. Just For Love e What About Me são conhecidos como os álbuns hawaianos dos QSM. Está tudo dito.
Em 1971, a trupe perde dois pesos-pesados: John Cippolina e Nicky Hopkins. Este desfalque e o idílio dos dois últimos discos fazem adivinhar um grupo à beira de cair na auto-indulgência ou a tocar para turistas nos bares de Honolulu. Mas a música é feita de surpresas e o novo registo da banda de Dino Valenti prova que ainda estão a uns valentes anos da reforma. Quicksilver é bastante sólido e está recheado de composições fortes. As infusões de folk sabem melhor que nunca, especialmente em Hope e no divinal Don't Cry for My Lady Love. I Found Love poderia ter saído das mãos do Carlos Santana dos inícios e o genial Fire Brothers é um milagre nesta fase da banda. Um dos melhores e mais vincadamente psicadélicos temas da sua história aparece ao sexto álbum. Que mais se pode pedir? O patrão da 4AD, Ivo Watts-Russell, que sabe muito bem o que faz, incluiu uma versão sombria e quase irreconhecível deste tema em Filigree & Shadow do projecto This Mortal Coil. The Truth fecha o álbum em modo rock descomprometido. Acima de tudo, sente-se o prazer dos músicos que, nesta altura do campeonato, conseguem um disco surpreeendente e que resume a carreira da banda em todas as suas facetas.
Foi sol de pouca dura. Em 1972, Comin' Thru aniquila as esperanças de uns Quicksilver renovados e perenes. À excepção de dois ou três temas (justiça seja feita, California State Correctional Facility Blues ainda entusiasma...), o disco é uma desilusão perante o que tinha sido alcançado há apenas um ano. Para castigo, não ponho aqui a capa.
A banda volta à carga em 1975 e com o line-up original. Desta vez, parte do hype é verdadeiro e os QSM podem orgulhar-se do que apresentam. I Heard You Singing é boa, Gypsy Lights é melhor, Cowboy on the Run é a melhor de todas. Witches Moon e Bittersweet Love são prazenteiros regressos ao passado, o que constitui o único problema do álbum Solid Silver. Oito anos antes teria sido uma bomba, em 1975 é apenas um estalinho. Foram as melhoras da morte dos Quicksilver Messenger Service. A loja fechou e reabriu em 1986 pela mão de Gary Duncan. Mais valia ter sido demolida. O grupo que existe hoje é apenas um pálido retrato do passado. Uma banda de covers de si própria. Mas, quando chega o Verão, os fantasmas do passado de um dos melhores colectivos de sempre a sair de San Francisco, ícones incontornáveis do psicadelismo, chegam para nos atormentar de forma benfazeja. High Spirits...