18 de junho de 2011

Second Life

E ao sétimo dia, os King Crimson descansaram. Após uma sucessão de sete obras absolutamente marcantes na história do rock, o colectivo eternamente liderado pelo fleumático Robert Fripp hibernou numa auto-imposta criogenia. Renovados e extasiados, retornam em 1981 com o seu provável melhor álbum desde o debutante e imortal In The Court Of The Crimson King, de 1969.
O objecto foi denominado Discipline e abriu caminho da melhor maneira à segunda vida dos King Crimson. Heróis do progressivo, nunca se deixaram afogar nas águas paradas da indulgência, constituíndo - juntamente com os Van der Graaf Generator - a facção mais aventureira, interessante e experimental desta estirpe. Poucas foram as bandas que romperam tão drasticamente com o seu passado como os King Crimson em Discipline. É sabido que sonoridades mais vanguardistas e cerebrais despontavam já nas duas obras que o antecederam, Red e Starless and Bible Black, ambas de 1974. Mas a tónica assentava ainda em temas expansivos, complexos, orbitando em elipse à volta dos arquétipos do prog rock. Há que destacar obrigatoriamente o último tema do grupo antes de entrar no seu wormhole: Starless, a derradeira faixa de Red, uma composição quase obscena na sua perfeição e que devia ter uma sala própria na Tate Modern onde tocasse ininterruptamente. Discipline vem reciclar o que restava desta leva, transformando a música num pot pourri de new wavepós-punk e recaídas de virtuosismo.
Antes da concepção do disco, apenas o baterista Bill Bruford e o omnipresente guitarrista Robert Fripp restavam da anterior encarnação. A eles juntaram-se Tony Levin no baixo (e no curioso Chapman stick) e Adrian Belew na outra guitarra e voz. Fripp estava fresquinho de uma série de colaborações com Brian Eno e David Bowie, assim como no rescaldo de um belíssimo álbum a solo (Exposure, de 1979). Belew era recém-chegado dos territórios dos Talking Heads, tendo igualmente sido parte integrante da banda que acompanhou Bowie. Com dois guitarristas de excepção (Fripp, o mestre virtuoso e Belew, o jovem vanguardista) e uma secção rítmica de respeito, Discipline só poderia ser um caso sério. E foi.
Simultaneamente leve e sombrio, o disco é constituído por um conjunto imaculado de temas límpidos mas complexos. Nota-se distintamente a influência do Bowie berlinense e dos Talking Heads sob a égide de Eno. Nota-se igualmente um saudável lado selvagem a espreitar por cima do ombro da lendária circunspecção da banda. Elephant Talk soa a desordem urbana, a informação cheia de ruído. Thela Hun Ginjeet mostra os King Crimson em elevada temperatura rítmica e espontâneo storytelling, numa composição que poderia estar em My Life in the Bush of Ghosts de Brian Eno e David Byrne ou em Fear of Music dos Talking Heads. Indiscipline faz pender a balança para o lado do rock mais musculado, entrecortado com o discurso spoken word de Adrian Belew. The Sheltering Sky e Discipline são dois excelentes instrumentais, o primeiro insistindo numa cadência algo étnica e dançável, se bem que introspectiva, o segundo prosseguindo o mesmo registo, mas revelando texturas circulares e algo hipnóticas.
Os dois grandes momentos do disco são, sem dúvida, Matte Kudasai e Frame By Frame. Matte Kudasai significa espere, por favor em japonês. Encapsula, efectivamente, algo de zen e suspende-nos no vazio ou à tona de um vasto leito oceânico. Belíssima e intemporal canção, prova igualmente que os Radiohead não encontraram sozinhos a passagem secreta para OK Computer e os padrões que o seguiram. Esta é uma das óbvias influências de Thom Yorke e seu bando. Frame By Frame é a imagem perfeita de Discipline: a simbiose entre a canção e como fugir aos seus clichés; a cisão entre o estranho e o familiarmente audível. Territórios povoados no início dos anos 80 por Bowie, Eno ou os Talking Heads aos quais o colectivo britânico junta a sua sapiência e a sua ciência.
Discipline não só franqueia de par em par as portas para a renovada existência dos King Crimson, como lhe estende um honroso tapete vermelho. Por onde passeiam ainda hoje, na corte de um reino que só a eles pertence.





Esta aparição dos King Crimson merece um apedrejamento pela imagem (eram os 80's, não esqueçamos...), mas uma chuva de pétalas pela música exibida. Para quem não consegue esquecer a dantesca visão de Adrian Belew num fato cor-de-rosa, aqui fica o líder dos King Crimson, um dos melhores e mais inovadores guitarristas de sempre, a puxar dos seus galões e a derramar os seus Frippertronics. Inigualável!