30 de dezembro de 2013

2013: A Soundtrack




Valha-nos a música para suportar mais um annus horribilis em Portugal. 2013 foi exasperante para qualquer pessoa socialmente consciente e os tempos revoltos teimam em agudizar-se. Neste retrocesso civilizacional que todos experienciamos, algumas regressões musicais foram prova de vitalidade e reinvenção. Os My Bloody Valentine voltaram, tão subitamente como se desvaneceram, e com um álbum mais que à altura das expectativas. Tal como David Bowie, que nos presenteou com um álbum de admirável solidez e pertinência criativa. Nick Cave continua a manter a qualidade composicional mesclada com arrojos e audácias nos seus registos, o que nunca o torna fastidioso e nos deixa sempre à espera de mais (continua imbatível ao vivo). Da nova fornada, as Savages engoliram-nos na escuridão visceral e Julia Holter trancou-nos no seu universo onírico e deitou fora a chave. Os Daft Punk fizeram tudo para seduzir e conseguiram arrebatar e os Arcade Fire estiveram-se nas tintas para fundamentalismos e incompreensões e editaram o mais surpreendente e polémico álbum do ano. Os eternos cruzados na demanda do Graal em forma de canção, não foram defraudados pelos Vampire Weekend, que confirmaram a tendência para a perfeição.
Segue abaixo a lista da praxe. Como sempre, a ordem não é rígida, reflectindo apenas a música que mais prazer me deu descobrir e ter como companheira ao longo do ano que agora termina.
 

1. My Bloody Valentine - MBV

2. Vampire Weekend - Modern Vampires of the City

3. Julia Holter - Loud City Song

4. Arcade Fire - Reflektor

5. Savages - Silence Yourself

6. Daft Punk - Random Access Memories

7. David Bowie - The Next Day

8. Nick Cave & The Bad Seeds - Push the Sky Away

9. The Knife - Shaking the Habitual

10. Kanye West - Yeezus

11. Factory Floor - Factory Floor

12. Laurel Halo - Chance of Rain

13. Oneohtrix Point Never - R Plus Seven

14. The National - Trouble Will Find Me

15. Disclosure - Settle

16. Forest Swords - Engravings

17. James Blake - Overgrown

18. Tim Hecker - Virgins

19. John Grant - Pale Green Ghosts

20. Chvrches - The Bones of What You Believe

21. Boards of Canada - Tomorrow's Harvest

22. Phosphorescent - Muchacho

23. Kurt Vile - Wakin On a Pretty Daze

24. Bill Callahan - Dream River

25. Unknown Mortal Orchestra - II

26. Mikal Cronin - MCII

27. Thee Oh Sees - Floating Coffin

28. Deafheaven - Sunbather

29. These New Puritans - Field of Reeds

30. Roy Harper - Man and Myth

31. Rhye - Woman

32. Arctic Monkeys - AM

33. Queens of the Stone Age - ...Like Clockwork

34. Grumbling Fur - Glynaestra

35. Haim - Days Are Gone

36. Fuck Buttons - Slow Focus

37. Darkside - Psychic

38. Laura Marling - Once I was an Eagle

39. Autre Ne Veut - Anxiety

40. Local Natives - Hummingbird

41. Rashad Becker - Traditional Music of Notional Species Vol. 1

42. Deerhunter - Monomania

43. Jonathan Wilson - Fanfare

44. James Holden - The Inheritors

45. Jon Hopkins - Immunity

46. Sun Kil Moon & The Album Leaf - Perils From the Sea

47. Foxygen - We are the 21st Century Ambassadors of Peace & Magic

48. Dean Blunt - The Redeemer

49. Mutual Benefit - Love's Crushing Diamonds

50. Midlake - Antiphon

29 de dezembro de 2013

Eterna Juventude (Sónica)


Raramente uma banda soou tão fresca como os Sonic Youth. Como se o próprio nome escolhido lhes garantisse perenidade e longevidade. Muito provavelmente o colectivo mais importante e influente do rock alternativo norte-americano dos últimos 30 anos, os diversos flirts com o noise e o experimentalismo, bem como curtas crises de acessibilidade, nunca lhes retiraram a aura punk. No sentido intencional, panfletário, iconoclasta e anti-establishment.
1991: The Year Punk Broke é um documentário de David Markey que retrata a tournée europeia dos Sonic Youth nesse mesmo ano. Em última instância acaba por ser um filme de época, que retrata a invasão europeia pelo rock underground americano e que utiliza factos culturais e históricos desse período para marcar a sua urgência, o seu teor de manifesto. É pelo momentum que o documentário vale e que o mantém apelativo após todos estes anos. Pelo cruzamento do passado com o futuro, em que os lendários Ramones convivem com os sempre intensos Dinosaur Jr.. Pela apresentação ao mundo dos magnânimos Nirvana, ainda diamante em bruto, sem suspeitas que Kurt Kobain se tornaria o Ian Curtis da geração MTV, e em topo de forma humorística (quem não for capaz de sorrir nostalgicamente algures entre os 15 e os 20 minutos do filme já não é corruptível pela punkalhada transgressora, o que é lamentável...).
1991: The Year Punk Broke continua a ser um estandarte da eterna renovação do rock, especialmente do mais descomprometido e centrado na sua energia e poder. Lírico mas real. Fugaz mas marcante. Muitos filmes do género surgiram, antes e depois dele. Este continua a ser o melhor para quem se deixou entranhar por esta música tão hormonal quanto amoral, tão congregante quanto alienante. Peço desculpa pelas legendas em espanhol, mas é o que há. E é suposto isto ser punk...


                              

27 de dezembro de 2013

Electrochoque


Dois exactos meses passaram desde que o mundo e a música perderam Lou Reed. É difícil afastar o sentimento de negação. Foi a maior perda de 2013, o desaparecimento de um artista irreverente, descomprometido e esclarecido até ao fim. Influente como poucos conseguiram e numa constante alimentação e fuga da sua própria lenda.
Já quase tudo foi dito desde a morte do músico norte-americano, porque todos temos sempre algo para dizer quando perdemos um herói, um modelo, um ídolo. As elegias a Reed, visionário fundador dos Velvet Underground; Reed, anjo caído num mar de drogas e álcool nos anos 70; Reed, ressuscitado criativamente no final dos anos 80... Cada disco, cada nicho, cada alto e baixo da sua vida merece ser avivado e escrutinado, porque é feito da matéria que compõe as lendas.
Lou Reed foi o verdadeiro patriarca do rock sofisticado, à frente do seu tempo. Sem ele não haveria David Bowie, Ian Curtis ou Kevin Shields. Poetizou as drogas, sacralizou o álcool, encafuou as ruas de Nova Iorque nos nossos quartos e electrificou-nos as vidas. Tudo aquilo que os nossos pais não queriam que soubéssemos mas que existe e não pode ser escondido. Revelado algures entre o romantismo e o escárnio, a raiva e o sarcasmo de uma voz que contava enquanto cantava.
Cada um tem algo para dizer quando perde um ídolo. Eu não sou excepção. Agora a bruma da morte começa a dissipar-se e o consumo exacerbado da obra, provocado por uma euforia triste, ganha um critério mais selectivo. Ao fim de anos de culto, é Berlin o disco que mais me marcou. O mal amado Berlin, cuja fraca recepção aquando da primeira edição, em 1973, levou Reed a um desprezo pelo corporativismo musical cujo acme foi atingido com o terrorismo sónico de Metal Machine Music.
Uma vez mais, a clássica resiliência reediana venceu, e, 35 anos depois da edição original, Berlin foi alvo de merecida aclamação ao longo de uma série de concertos comemorativos. A celebração foi imortalizada em filme por Julian Schnabel e capta na perfeição o êxtase eléctrico, a poesia urbana e a musculatura rítmica que brotam do melhor Lou Reed ao vivo.
No fim sobra o vazio, o luto perpétuo. Fica pouco no mundo quando alguém que nos ajudava a suportá-lo e a fugir dele se desvanece. Restam os passeios pelo lado selvagem, os subterrâneos de veludo, a magia e a perda, os dias perfeitos...

               

23 de dezembro de 2013

Fantasias de Natal

Os discos de Natal são vistos, por norma, como obras menores. Feitas no intuito de encaixar mais uns cobres ou desencadear um sentimentalismo foleiro. Este dogma tem fundamento quando nos deparamos com aberrações tais como o disco natalício de Billy Idol. Mas é discutível se for aplicado a uma obra mais consistente como Christmas, de Chris Isaak.
Se existe um disco de Natal incontornável em termos da qualidade da música e dos seus intérpretes, esse disco é The Bells of Dublin dos Chieftains, datado de 1991. O lendário colectivo irlandês - o mais famoso e aclamado da música tradicional da Ilha Esmeralda - concilia um conjunto de temas alusivos à época, intemporais e místicos. E congrega igualmente alguns nomes sonantes da música popular para a sua interpretação.
Elvis Costello dá voz ao vincadamente celta St. Stephen's Day Murders; Marianne Faithfull despe o manto de bruxa e canta para embalar em I Saw Three Ships a Sailing; Jackson Browne presenteia-nos com uma rendição plangente do belíssimo The Rebel Jesus. O recatado The Wexford Carol toma proporções devocionais na voz de Nanci Griffith e Rickie Lee Jones entrega-se de alma e coração a O Holy Night.
O que sobra (e é imenso e riquíssimo) é Chieftains da melhor safra. Carols, jigs, reels e outras fantasias celtas mescladas com as incursões que os decanos irlandeses sempre tomaram por músicas de outras paragens, da música tradicional francesa de Il Est Né/Ca Berger ao recolhimento contemplativo de A Breton Carol (cantada em gaélico). A ambiência conjura noites frias, mas aquecidas por lareiras e aconchego humano. Por whiskey e boas memórias, de cores, cheiros e sabores eternos. Noites intermináveis que se prolongam para dias luminosos e cheios, em que a esperança parece regressar, nem que seja por momentos. A execução é mágica, envolvente e penetrante. E é da noite para o dia que The Bells of Dublin se projecta. O anúncio festivo dos doze sinos centenários da Catedral de Christchurch prolonga-se pela escuridão fria, de melodias ricas mas essência pobre, e termina num amanhecer resplandecente de alegria e comunhão. Não sei se é o melhor disco de Natal de sempre mas, depois deste, não tive vontade de ouvir nenhum outro, para não correr o risco de quebrar o encanto.

16 de dezembro de 2013

Kosmische Kosmetik XLVII

A missão dos irmãos Seesselberg, Eckart e Wolf-J., começou por ser académica: mostrar ao mundo as capacidades e potencialidades dos sintetizadores, extraterrestres electrónicos para a maioria dos mortais dos inícios dos anos 70. Essas demonstrações levaram a que o duo alemão editasse para a posteridade um disco feito das suas próprias pirotecnias cibernéticas, algo que deve ter afugentado os melómanos mais incautos e classicistas da época mas que detém hoje uma imagem quase paterna para a descendência da música electrónica mais audaz e não conformista.
Surgido em 1973, o álbum Synthetic 1 arranca como o despertar de um sonho mau dos Kraftwerk. Uma sucessão de agudos alarmantes que põe os sentidos em alerta antes de se afundar num charco de bleeps e estática. A esta Overtüre segue-se uma série de peças de curta duração, que se assemelham a processadores com vida própria, desesperados por comunicar. A melodia é quase inexistente e, quando surge, é fria e descarnada, um fio conectado algures, perdido entre os demais. Como em Speedy Achmed ou no denso e tenso Was Dir Heute Freude Macht, Das Verschieb Nicht Über Nacht!.
O tema de maior duração tem um título à altura: Die Menschen Sind Glücklich, Sie Kriegen, Was Sie Begehren, Und Begehren Nichts, Was Sie Nicht Kriegen Können - Laubsägebastler, Briefmarkensammler Und Brieftaubenzüchter Bilden Das Rückgrat Der Menschheit. Mas são palavras a mais na idade dos porquês. A música é abstracta, elegíaca e foge da luz. Uma marcha fúnebre electrónica em subliminar crescendo até ao enterro final. Phönix aproxima-se da precedente em termos de duração, mas a monotonia escura e fria dá lugar a um pulsar constante, com picos e quebras de intensidade. Como ser largado na escuridão do espaço, ou passear sozinho pela desolação lunar.
Algures entre Stockhausen e Conrad Schnitzler no passado e Merzbow e os Autechre no presente, a fraternidade Seesselberg nunca passou da obscuridade nem do academismo. Synthetic 1 perdeu-se na bruma dos tempos e tornou-se um artefacto mais curioso que musical. No entanto, continua a haver um bizarro e apelativo charme neste disco. Como nas aulas a que assistíamos na faculdade só pelo prazer de ouvir o professor e sabendo que aquela matéria nunca teria aplicação prática.

                                 

11 de dezembro de 2013

Grande Lata



A principal característica dos Can sempre foi a espontaneidade. O próprio Holger Czukay, baixista e mentor da banda, chegou a afirmar que as composições e as actuações ao vivo do seu colectivo derivavam de criações instantâneas. E foi o improviso e o constante experimentalismo que fizeram do grupo germânico, mais que um dos porta-estandartes do krautrock, um dos projectos mais vanguardistas, subversivos e influentes do rock inteligente. Serão, juntamente com os Velvet Underground, a maior banda de culto de sempre. Mas enquanto os nova-iorquinos viram a sua projecção aumentar ao longo do tempo, a banda de Colónia sempre se moveu nas sombras, a sua música mais fácil de mencionar para impressionar que de ouvir para apreciar.
A formação clássica dos Can que, para além de Czukay, incluía Damo Suzuki, Michael Karoli, Irmin Schmidt e Jaki Liebezeit editou alguns dos discos mais futuristas e estratosféricos da década de 70. A música de Tago Mago, Ege Bamyasi ou Future Days é estranha, cerebral, hipnótica, tão imediata como depurada na sua estrutura, tão variada como repetitiva em termos rítmicos. É a mais imperativa de ouvir, ter e venerar, se bem que os Can nunca foram desinteressantes ou vulgares. A odisseia iniciada com o imenso e intenso Monster Movie e terminada com Rite Time está repleta de passos em frente e estratégias progressistas.
Can - The Documentary propõe uma história visual da banda. Parte integrante da exaustiva Can Deluxe Box DVD editada em 2005, é o filme ideal e definitivo para conhecer os Can para além da música. Filmagens raras e históricas, excertos de antológicas actuações ao vivo e muitas entrevistas preenchem a hora e meia de imagens, que passa demasiado depressa. Apesar de tudo, o documentário condensa o essencial da singular carreira de um dos colectivos mais geniais de sempre, que não só colocou a Alemanha no mapa da música influente como revolucionou para sempre os preceitos do rock como forma de arte.

                                 

10 de dezembro de 2013

O Homem dos Quatro Instrumentos

John Surman começou por ser uma figura chave no boom do novo jazz britânico nos finais dos anos 70. Saxofonista exímio e caloroso, foi abandonando ao longo da sua carreira os territórios mais óbvios da cartilha jazzística, enveredando por estéticas mais atmosféricas. Esta lenta migração deveu-se sobretudo à ECM, casa da qual Surman é residente a tempo inteiro desde a edição de Upon Reflection em 1979.
O estilo do músico inglês é, hoje, inconfundível. São enaltecidas as atmosferas e as ambiências nocturnas e instrospectivas e o tom meditativo e melancólico impera na maioria dos seus registos. John Surman acaba por ser, em simultâneo, uma influência e um produto da escola ECM, um dos mais importantes definidores da sua estética.
Da sua vasta obra, um dos discos mais emblemáticos é Private City, de 1987. Um disco criado para um bailado com o mesmo nome, feito de improvisações e no qual, como começará a ser tendência no seu percurso criativo, Surman executa todos os instrumentos, saxofone, clarinete, piano e sintetizadores. O controlo é total, a mestria absoluta. Apesar do nome, a música não evoca apenas paisagens citadinas. Persiste um misticismo, que conjura os elementos e acorda sentimentos.
O álbum começa com um dos mais belos e perenes temas de John Surman, Portrait of a Romantic. Uma lenta e arrebatadora espiral de clarinete sobre piano eléctrico com efeitos balsâmicos e transcendentes. E termina com The Wizard's Song, outra composição perfeita, atmosférica e cinemática, que fica a ressoar inconscientemente muito tempo depois do disco ter terminado. Outras magníficas paragens nesta jornada incluem Not Love Perhaps, ruminação crepuscular ladeada por vozes fantasmagóricas, The Wanderer, melodia cristalina e contemplativa que serpenteia encantatoriamente ao nosso redor, e Roundelay, em que uma miríade de sopros em overdub ganha contornos de jazz de câmara.
Místico, sideral e sempre envolvente, Private City é a obra de um músico romântico mas aberto às possibilidades sónicas para expandir a sua arte. Dessa forma expande igualmente o coração e a mente de quem o ouve.

5 de dezembro de 2013

Jazz Impuro

Eric Dolphy foi um dos maiores inovadores do jazz da década de 60. Multi-instrumentista exímio, dividido entre o saxofone, a flauta e o clarinete, impulsionou o género para a vanguarda durante a sua curta existência. Dolphy faleceu aos 36 anos, no auge do seu talento e após a edição daquela que muitos consideram a sua obra máxima: Out To Lunch!
Foi apenas o quinto disco lançado durante esse esparso tempo de vida. Estávamos em 1964 e outras obras marcantes fizeram desse ano um período rico para o jazz. Crescent de John Coltrane, Speak No Evil de Wayne Shorter ou Spiritual Unity de Albert Ayler, são alguns dos clássicos de um estilo musical que começava a afastar-se do seu estatuto de entretenimento para angariar cores da paleta do experimentalismo. Cada vez mais próximas das estruturas avant-garde da música clássica contemporânea que da propulsão do swing, as novas tendências jazzísticas apontavam armas à mente em detrimento do corpo.
Out To Lunch! combina com mestria física e metafísica. O quinteto de Dolphy (com especial destaque para os acólitos Freddie Hubbard e Bobby Hutcherson, respectivamente no trompete e no xilofone) alcança momentos mais transcendentes e cerebrais sem nunca trocar a paixão pela razão. Abundam os solos e as mudanças de textura, as variações de ritmo e a complexidade melódica. Caminhamos pela fronteira entre um jazz que ainda é bebop mas que já tem muito de free. Hat and Beard é vertiginoso e desconjunta-se para se unir de novo. O tema-título assemelha-se a uma marcha jazzística entrecortada por quebras de tempo, ritmos angulares e melodias dissonantes. Something Sweet, Something Tender é o tema lento flagrante do disco, mas a estranheza da estrutura e rasgos de atonalidade não deixam que a ternura e a doçura reinem em absoluto. Gazzelloni faz jus ao virtuosismo de Dolphy na flauta mas vincando as possibilidades experimentais e sónicas que este retira do instrumento. E Straight Up and Down tem um groove tão alienígena que quase poderíamos apelidá-la experimentalismo emocional.
Não é à toa que Out To Lunch! é considerado uma das obras-primas do jazz de vanguarda. É um disco desafiante e surpreendente ainda hoje. Os puristas do género poderão ficar de cabelos em pé com o arrojo e o ludismo com que a música é tratada, mas os amantes da arte mais transgressiva e progressista deliciar-se-ão continuamente.

18 de novembro de 2013

Bittersweet Symphony




Podia ser apenas efeito do culto e do mediatismo, mas não é. Cold Fact e Coming From Reality são dois discos assombrosos e plenos de canções brilhantes. Da melhor safra surgida nos inícios dos anos 70. Ambos foram os únicos legados do cantautor do Michigan Sixto Rodriguez, que desapareceu misteriosamente após a conclusão do segundo e alimentou os mais variados mitos e mistérios nas décadas que se seguiram.
Temas como Crucify Your Mind, I Wonder, Sugar Man, A Most Disgusting Song ou a devastadora Cause encontram-se perfeitamente ao nível de pares de profissão mais consagrados como Bob Dylan, Neil Young ou Van Morrison. Criações cuja simbiose entre um lirismo crú mas imensamente poético e um instinto melódico notável transformam em pequenos monumentos à arte de fazer canções.
A veneração velada pela ausência que rodeou Rodriguez nos últimos 40 anos terminou subitamente com a edição de Searching For Sugar Man. Filme documental de 2012 realizado por Malik Bendjelloul, recupera o homem por trás do mito, mostrando a sua verdadeira história e devolvendo-o ao mundo dos vivos. O tom algo melodramático é inevitável porque o próprio enredo é agridoce e é impossível não imaginar o que teria acontecido a um músico tão talentoso se não tivesse arrumado as botas prematuramente, desconhecendo que era ídolo de um público que também pouco sabia sobre ele.
Mais que tudo uma história de segundas oportunidades, Searching For Sugar Man celebra uma vida de amor à música que teve um inesperado efeito borboleta. E, mais que o retrato de um grande e talentoso artista, uma lição de como nada está oficialmente terminado até que a banda pare de tocar.


               

9 de novembro de 2013

The Life of P

A vida dos P foi curta. Durou entre 1993 e 1995 e gerou apenas um fruto. A parca atenção dada a este projecto paralelo de Gibby Haynes - líder dos Butthole Surfers - prendeu-se, sobretudo, com o músico de serviço Johnny Depp. O actor fetiche de Tim Burton e objecto de fantasias para jovens (e não-assim-tão-jovens) damas melancólicas, toca guitarra e baixo ao longo de todo o álbum homónimo da banda e fá-lo com a galhardia de um rocker deliciado com a desbunda.
P é um disco tremendamente eclético e quase esquizofrénico. Abre deliciosamente com o rock magnético de I Save Cigarette Butts e a partir daí uma caixinha de surpresas exibe-se perante nós. Existe espaço e liberdade para tudo, desde paródias ao R.E.M. em Michael Stipe a uma versão indie rock de Dancing Queen dos ABBA. E não sabemos como reagir a estas provocações porque a música está sempre à altura dos devaneios.
A sombra dos Butthole Surfers mais viscerais e inconvencionais, filhos bastardos do punk e do psicadelismo, projecta-se em Zing Splash e Oklahoma. E os P ganham identidade própria em experimentos como Jon Glenn (Mega Mix) e Scrapings From Ring, duas peças apostadas em trazer à ribalta uma espécie de dub rock que oscila entre o ambiental e o demencial.
Há ainda espaço para os blues psicóticos que David Lynch não desdenharia em White Man Sings The Blues, para uma desconjuntada canção de amor - Die Anne - e para The Deal, um estranho épico sucedâneo do grunge que nos faz coçar o queixo à procura de sentido. Porque tudo e nada fazem sentido neste disco. É música em bruto, na qual as únicas cedências concedidas são à arte da miscelânea.
Para além da super estrela Johnny Depp, merece igualmente destaque a colaboração de luminárias como Chuck E. Weiss, Flea (dos Red Hot Chili Peppers) e Steve Jones (dos Sex Pistols) nesta obra. Um disco singular e desafiante, que não foi um blockbuster e passou fugazmente pelos anos 90, mas cuja personalidade original foi feita para durar.

1 de novembro de 2013

Estrela de David

A maioria dos que me lêem conhece certamente o icónico Blow-Up, filme de Michelangelo Antonioni cujo enredo se centra num fotógrafo que, conscientemente ou não, é testemunha involuntária de um assassínio. A película de 1966, com o seu retrato romantizado e estilizado da Swinging London e das suas vivências libertárias, tornou-se um marco cultural, parte integrante do imaginário da década de 60 do século passado.
Igualmente célebre ficou David Hemmings, o actor que encarnou o fotógrafo David Bailey e cuja personagem se colou inevitavelmente à sua carreira cinematográfica.
Talvez apenas uma minoria dos que me lêem conheçam a vertente musical de David Hemmings. O que é natural porque o actor apenas foi cantor num disco - Happens, de 1967.
É uma obra que vale mais pela curiosidade que pelo conteúdo. Hemmings é acompanhado por gente de valor (como Roger McGuinn e Chris Hillman dos Byrds ou o baterista Ed Thigpen do trio jazzístico de Oscar Peterson) e entrega-se a versões de nomes não menos consagrados como Tim Hardin ou Gene Clark. Estas, Reason To Believe e Back Street Mirror, abrem o álbum da melhor maneira, mostrando que David Hemmings poderia ter sido um cantor credível ao invés de um grande actor. No entanto, o glamour da Swinging London que tanto ajudou a definir a sua imagem encontra-se ausente dos cenários sónicos de Happens. A maioria das canções enquadra-se numa moldura folk pop com ligeiros lampejos de psicadelismo, exemplificadas perfeitamente em Good King James, Anathea e War's Mystery e no toque transcendente que a cítara de Roger McGuinn lhes confere. After The Rain e The Soldier's Wind ressoam como ecos de prados verdes ingleses.
David Hemmings não conseguiu ser um bardo de sucesso, ao contrário do seu trabalho como actor. Happens passou fugazmente pela música e a música apenas o olhou de soslaio. Para a posteridade fica uma das raridades possuidoras da bizarria típica da década que a viu despontar.

19 de outubro de 2013

Sortido Pop Art


Pode ter sido considerado o primeiro evento multimédia de sempre, ou a primeira rave party de que há memória, mas o Exploding Plastic Inevitable foi muito mais que isso. Foi a génese da promíscua mas salutar relação entre as artes do cinema, da música e da performance.
Perde-se na bruma do tempo o que realmente aconteceu nesta série de eventos organizados por Andy Warhol durante os anos de 1966 e 1967. As próprias filmagens existentes resumem-se a uma curta metragem realizada por Ronald Nameth. Mas o que se assiste nesses escassos minutos é um claro vislumbre da envergadura dos actos e da ruptura com as normas vigentes. Nunca se tinha feito nada assim e muitas foram as pálidas imitações que se seguiram, sem todavia conseguir a chama mística de projectar Kiss ou Whips sobre o rock abrasivo dos Velvet Underground. Nem capturar Nico na plenitude da sua beleza esfíngica. Ou as danças transgressoras de Gerard Malanga e Mary Woronov.
Imaginam-se os eflúvios de dança, substâncias e celebridades arrastadas para e pelo Exploding Plastic Inevitable. Imagina-se a atmosfera de assistir ao advento de uma nova era, sem compromissos, de total e desafiante liberdade pessoal e artística. E é impossível não associar Camões a Warhol, citando que melhor é experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Até porque escasseia a quantidade e a qualidade de happenings sucedâneos no presente. Eis a reportagem possível.

                             

O Piano Infinito

Deixando de lado a forma e insistindo no conteúdo, The Well-Tuned Piano contém alguma da música mais estranhamente bela e cativante criada por La Monte Young. O próprio compositor norte-americano, tido por muitos como o patriarca do Minimalismo, considera-a a sua obra-prima. Mas considera-a igualmente inacabada, sendo que tem vindo a sofrer acrescentos e remendos desde 1964 até aos nossos dias.
Uma performance de The Well-Tuned Piano pode durar entre cinco e seis horas. Sendo uma peça essencialmente improvisada, não possui uma estrutura rígida, exigindo apenas ao executante uma sucessão de secções e sub-secções pré-definidas. O resultado é um mergulho num mundo de sons maioritariamente hipnóticos, que varia entre ruminações lentas e idílicas e espirais intensas e repetitivas.
Tal como o título da peça intui, a afinação do piano é a base da sua interpretação. Mantida secreta durante quase três décadas, foi apenas revelada em 1991, permitindo que a composição passasse a ser executada por outros que não o seu autor. É esta forma alternativa de afinar um piano que provoca a catadupa de sons estranhos mas igualmente familiares que envolvem o ouvinte. As cordas ecoam espectralmente e transmutam-se em reverberação. Vislumbra-se uma osmose entre o formalismo da música clássica ocidental e as texturas simples e monofónicas da música oriental, especialmente da Índia.
Haja tempo e disponibilidade para a absorver e The Well-Tuned Piano tornar-se-à uma experiência recompensadora. Uma peça-chave não só do Minimalismo e dos drones caracteristicamente explorados por La Monte Young, mas de toda a música vanguardista do século XX. Nunca um piano foi tratado assim.

18 de outubro de 2013

Psicadelismo Outonal

Numa altura em que se celebra o regresso dos Mazzy Star com a expectável qualidade melancólica de Seasons of Your Day, é interessante resgatar da obscuridade o primeiro projecto de David Roback, cara-metade artística de Hope Sandoval. Surgidos da fornada de bandas de Los Angeles dos anos 80 que ficaram eternamente vinculadas ao movimento Paisley Underground, os Rain Parade recuperaram um certo psicadelismo, assente numa insustentável leveza associada a doces tons de cinzento.
O colectivo californiano editou o seu primeiro álbum em 1983. De nome Emergency Third Rail Power Trip, é uma pérola semi-desconhecida, um artefacto de culto mas suavemente apaixonante. Como toda a tendência do género Paisley Underground, é um disco revivalista e pouco ligado aos cânones da sua época. As guitarras byrdsianas, as vozes lânguidas e arrastadas e um instinto melódico a la Big Star não deixam margem para dúvidas quanto às influências da banda que David Roback liderava com o seu irmão Steve. Mas corre nas veias desta gente uma soturnidade latente, sem sintomas explícitos, que usa óculos escuros num solarengo dia de Verão sem os tirar quando a noite cai. 
Indo directo ao assunto, nada como nomear a esmagadora Carolyn's Song. É a melhor canção do álbum e uma das melhores dos anos 80 (transcende-os, de facto). Uma balada dolente e dorida, com espasmos de bateria e apertos de electricidade no coração. O projecto melancólico de 1º escalão This Mortal Coil apresentaria a sua versão anos depois, em Blood, mantendo a beleza triste mas nunca o desgosto sonolento do original.
Nada chega aos calcanhares deste momento em Emergency Third Rail Power Trip, mas há motivos de sobra para a sedução e rendição aos encantos dos restantes 9 temas que o formam. Tais como a nuvem em dia de sol de What She's Done To Your Mind, a sonhadora e envolvente Kaleidoscope ou a levitação psicadélica de This Can't Be Today. Talking In My Sleep parece antecipar os Stone Roses (rapazes com influências similares, porém mais luminosos), Look At Merri ginga com tímida sensualidade e o álbum termina com um rock de garagem quase puro intitulado Look Both Ways.
Emergency Third Rail Power Trip foi reeditado em 1992, acompanhado do segundo registo da banda, o igualmente interessante e refinado mini-LP Explosions In the Glass Palace. E é esta a edição que vale a pena ter, sobretudo por You're My Friend, single de 1985 e um dos seus temas mais imediatos e melhor desenhados. É certo que nesta altura David Roback já sabia bem o que fazia e os Rain Parade são tão importantes e consistentes como tudo o que se seguiu no seu percurso musical.

2 de outubro de 2013

Like a Rolling Stone


Já lhe chamaram o Santo Graal das biografias de estrelas do rock e com toda a legitimidade. Mais que um livro, Life é uma revelação. A biografia para esmagar todas as biografias. Pela frontalidade, crueza e sinceridade. Como se Keith Richards fosse trancado connosco numa sala vazia, apenas com um volume de Marlboro e uma garrafa de Jack Daniel's e desfiasse intimamente o seu rosário de memórias.
É um solilóquio que não deixa nada por dizer, nenhum mito por esboroar, nenhum rumor por confirmar. O lendário guitarrista dos Rolling Stones aplaca-nos a curiosidade acerca da sua vida preenchida de música e excessos. A vida que o levou da infância pobre na cidadezinha de Dartford no pós-2ª Guerra Mundial à aclamação universal como guitarrista da maior banda de rock'n'roll do mundo.
O resto é o que se espera de Keef:  A avalanche de drogas, a fuga que propiciam, o combustível narcótico que delas advém e a desconstrução do seu romantismo; o sexo com mulheres que nunca pensou vir a ter; julgamentos de vária ordem; tiros, facas e carros a acelerar pela noite americana; a verdade sobre Brian Jones; a reputação de Mick Jagger estraçalhada. E, mais que tudo, um enorme fuck you à autoridade e às normas estabelecidas lançado por um homem que viu e viveu mais do que qualquer um de nós alguma vez sonhou. Um homem que, apesar da carapaça durona e o epíteto de excessivo e decadente demonstra, não raras vezes ao longo do livro, uma sensibilidade enorme e cavalheiresca.
Nenhuma descrição faz plena justiça ao que se encontra por entre as páginas de Life. Os pormenores sumarentos e as revelações surpreendentes só fazem sentido relatados pelas palavras de Keith e pela pena do seu co-autor, o jornalista James Fox. Dizer que esta obra é imprescindível para qualquer verdadeiro amante do rock torna-se, assim, redundante.

29 de setembro de 2013

Saeta Cósmica


De Espanha nem bom vento nem bom casamento, aprendemos a ouvir desde tenra idade. Este, tal como tantos outros aforismos, é vazio de fundamento. Não que uma invasão tentada e outra consumada nos devesse poupar a uma latente desconfiança de  nuestros hermanos, mas sim por via desse elemento agregador e apaziguador que é a música. Se a Espanha tem muito a responder pela dúbia qualidade artística de muita invasão musical a este território, outros há que raramente são divulgados e mereciam toda a nossa hospitalidade. 
O projecto Neuronium, criação do belga tornado catalão Michel Huygen, é considerado o primeiro embrião da música cósmica feita em terras espanholas. A operar desde 1976, é no seu primeiro álbum que encontramos, desde logo, a melhor cepa de uma discografia que já ultrapassa os 40 títulos. E se Huygen se deixou seduzir por paisagens mais aprazíveis ao ouvido logo nos inícios dos anos 80, a obra que o dá a conhecer é um objecto mágico de electrónica espacial e ambiental. 
Quasar 2C361, editado em 1977, sofre as óbvias influências dos grandes nomes da electrónica europeia da época, nomeadamente Tangerine Dream e Klaus Schulze, mas também da sensibilidade melódica de Eroc e do misticismo dos Popol Vuh. Apesar disso, apresenta um grau de frescura e personalidade bem vincados e que o tornam um objecto imprescindível na história do género. 
Para além de Huygen, participam no disco o segundo teclista Carlos Guirao e o guitarrista Alberto Giménez, cujo estilo não se afasta muito dos grooves siderais do grande mestre Manuel Göttsching. O que deles emana, ao longo de quatro extensos temas, é um soberbo exercício de música sem gravidade e suspensa num tempo sem medição. O tema-título, que abre o disco, imiscui uma guitarra acústica à poeira cósmica dos sintetizadores e resulta numa espécie de flamenco lento e em rotação. Uma flauta aproxima-a dos prazeres terrenos. Uma invasão de sintetizadores logo a puxa para junto das estrelas. 
Catalepsia deixa-nos a pairar sobre outro mundo, novo e admirável, imutável em ondas sintetizadas, caleidoscópico na guitarra que o colora repetidamente. El Valle de Rimac assemelha-se a um despontar solar visto de uma imensidão negra, uma lenta e esplendorosa ascenção, de melodia tão doce quão misteriosa. Turo Park acentua a beleza fria e majestosa do disco, num crescendo luminoso e gélido, como aquele que se encontra nos elementos cósmicos desprovidos de vida mas hipnóticos de cor e forma. Tudo termina com vozes de crianças a ecoar ao longe, como sempre, a epítome das possibilidades futuras.
Quasar 2C361 sofre de uma produção rudimentar, fruto das limitações da sua era, mas isso não lhe tira o charme, a graça e a intencionalidade. Independentemente do estilo é um objecto único na música espanhola, que nunca passará do culto, mas que pode trazer delícias a todos os que navegarem a bordo deste galeão cósmico.

18 de abril de 2013

Amada Neurose

O primeiro disco a solo de Vincent Gallo é um objecto quase inclassificável. Possui uma aura de romantismo negro e claustrofóbico que tanto parece afectar-nos como escarnecer de nós. A música favorece um trip-hop denso e esquelético, mas ecoam ambientes jazzísticos e fumarentos, bem como momentos acústicos e nocturnos. Omnipresente só mesmo a solidão do intérprete, uma solidão impenetrável, quase inconsolável. Mas narcísica.
When acaba por fazer jus à volatilidade e imprevisibilidade de Vincent Gallo. Artisticamente activo desde finais dos anos 70, o realizador-actor-músico-e-esporadicamente-modelo fez parte de projectos sonoros quase desconhecidos como Bohack ou Gray (este com o artista plástico vanguardista Jean-Michel Basquiat). A música e a pintura foram os seus principais raios de acção nos anos 80, sendo a década seguinte o período que assistiu à evolução de Gallo como actor e realizador. Marcantes são as aparições em filmes como The Funeral de Abel Ferrara e Nénette et Boni de Claire Denis. Em Arizona Dream, película de 1993 dirigida por Emir Kusturica, Gallo revela já os traços de humor surreal e neurose fogosa que o definem sem nunca o reduzirem. Esta cena é particularmente deliciosa...
O retorno significativo à música acontece no celebrado Buffalo '66, uma obra-prima do cinema independente na qual Gallo é responsável pela banda-sonora original, para além de realizador e actor principal. E, em 2001, surge When. Os motivos que levaram Vincent Gallo a lançar-se a solo musicalmente nesta altura são insondáveis. Como tudo nele, aliás. É dessa forma, misteriosa e intrigante, que a abordagem ao disco deve ser feita. Uma obra estranha e elegíaca, que soa a artesanal, a um negativo musical de Buffalo '66 e que existe apenas porque o seu autor assim o desejou.
When é um álbum com 10 temas, em que metade são instrumentais. Gallo parece emparedado nos seus próprios fantasmas, confinado a um quarto escuro, exorcizando amantes perdidas. I Wrote This Song for the Girl Paris Hilton e Was projectam uma nostalgia triste e opaca, com loops de sopros e xilofone, nocturnos como jazz. Tudo o resto é esparso, subtil, minimal. Gallo canta com voz andrógina, próxima do Chet Baker mais opiáceo em Honey Bunny, do mais frágil na canção-título. Apple Girl, Laura e Yes I'm Lonely convidam ao isolamento mas suplicam por afecto. It could be so nice... murmura repetidamente a voz nesta última, com a delicadeza de uma canção de embalar, com a inquietude de uma obsessão.
Vincent Gallo pode ter feito um disco para ele mesmo, acerca de si mesmo. Mas este é um exercício de narcisismo merecedor de indulgência e louvor, pois o seu criador é realmente único.

31 de março de 2013

Insight



Unknown Pleasures - Inside Joy Division promete ser uma viagem à intimidade da mítica banda de Manchester. Assinado por Peter Hook, o músico que inovou e granjeou um estilo único na arte de tocar baixo, o livro distingue-se desde logo pela narrativa simples e escorreita. Hook assume contar a verdadeira história da banda, com as memórias de quem viu tudo por dentro e acerta agora contas com um passado que foi tão maravilhoso quanto traumático.
A história dos Joy Division acaba por ser igualmente a história de Ian Curtis, a alma e o coração do grupo, da sua ascenção e queda e da imortalidade alcançada pela despedida prematura. A aura e o mito associados ao vocalista são sobejamente conhecidos (o génio lírico, o corpo torturado pela epilepsia e a alma pela divisão entre duas mulheres) e Hook opta por mostrar um retrato mais humano do seu amigo e companheiro musical. Um Ian Curtis menos conhecido, com as loucuras, excessos e diatribes da juventude, apaixonado pelas artes e desejoso de novas experiências. Intenso e entregue à sua música ao ponto de descurar gravemente a sua saúde em nome do sonho que o movia.
A obra é igualmente plena de histórias sumarentas e episódios anedóticos, sendo que Peter Hook prefere sempre mostrar o lado mais luminoso e frugal dos Joy Division que acentuar a faceta divinizada, sombria e impregnada de angústia existencial à qual a banda é comummente associada.
Unknown Pleasures é igualmente uma semi-autobiografia do seu autor, pelo que a história é contada com a visão e a opinião particulares de quem viveu 4 anos no seio de um dos colectivos musicais mais importantes e influentes dos últimos 40 anos. Um grupo que morreu com a morte do seu líder e que se refez sobre as cinzas do seu fantasma. Os prazeres dos Joy Division já são mais que conhecidos, mas nunca é demais perdermo-nos neles. Eis um bom motivo para o regresso.

23 de fevereiro de 2013

Arte Rock

Em 1972, ano insuflado por odisseias sinfónicas de rock progressivo, irromperam os Roxy Music, destilando canções de 3 minutos como Virginia Plain ou Pyjmarama, decretando um boicote ao supérfluo e recuperando a urgência do momento. Juntamente com o Bowie de Ziggy Stardust e os T-Rex de Bolan e o seu Electric Warrior, devolveram a lascívia ao rock, desta feita de forma premeditadamente arty, encenada, cinemática. Se o primeiro álbum da banda londrina era um oásis num deserto de solos de guitarra intermináveis e peças que ocupavam o lado inteiro de um vinil, se a própria imagem dos seus membros (do dandy futurista Bryan Ferry ao alien andrógino Brian Eno, passando pelos óculos de mosca de Phil Manzanera) era radicalmente diferente e inovadora para os standards da época, a sua segunda aparição solidificou o pouco que remanescia líquefeito.
There's a new sensation / A fabulous creation... As duas primeiras estrofes de Do The Strand, tema que abre For Your Pleasure, são indicativas do que se segue. O disco de 1973 pode bem ser a criação mais fabulosa dos Roxy Music, aquela que encontra o grupo no pico dos seus poderes. Onde o classicismo melódico e requintado de Ferry se cruza na perfeição com o experimentalismo vanguardista de Eno.
Supostamente, Do The Strand pretende ser um incentivo à dança com o mesmo nome. Uma dança desconhecida, sob um ritmo enérgico e uma letra críptica, debitada incansavelmente. Um clássico hoje, mas uma bizarria no panorama musical de 1973.
A mesma mistura de familiaridade e estranheza percorre o álbum, flagrantemente acessível mas distorcidamente maquilhado. É inegável a afinidade com o krautrock, mais especificamente os Can, no longo épico minimal e hipnótico The Bogus Man. A beleza fugaz da juventude e o estrelato efémero de Beauty Queen. A decadência crepitante do genial In Every Dream Home a Heartache, onde um homem que tem tudo ama obsessivamente uma boneca insuflável (Inflatable doll / My roll is to serve you ... I blew up your body / But you blew my mind).
Sem um único tema fraco, do frenesim contagiante de Editions of You às difusas sombras existenciais de Strictly Confidential, For Your Pleasure é um dos álbuns de referência da década de 70 do século passado. Há quem chame a esta música excepcional glam rock, há quem lhe chame art rock. Ambas fazem sentido, mas felizmente aqui a arte sobrepõe-se ao glamour. E quando chegamos ao fim, quando o tema-título começa solenemente a circular à nossa volta, qual canção de embalar com electricidade estática na ponta dos dedos, uma estranha calmaria invade-nos e leva-nos para longe. E arroubamo-nos. E deixamo-nos levar pela fantasia. E acreditamos que o rock pode ser arte.
O conflito de egos entre Eno e Ferry não demoraria a abrir fissuras e o não-músico extravagante e pejado de penas e lantejoulas cedo partiria para uma carreira a solo que moveu montanhas na música como hoje a conhecemos. Ferry prosseguiu a timonar o barco, os Roxy Music continuariam a ser a sua banda e muitos feitos notáveis se seguiram. Mas a sintonia de ideias e a química artística de For Your Pleasure são únicas e irrepetíveis.

                             

Scottology




Na ressaca de mais um disco desconcertante e incatalogável, Bish Bosch, continua a ser saudável assistir a uma nova vaga de interesse por Noel Scott Engel. Ou Scott Walker, americano por defeito, europeu por virtude, cujo nome adoptado pela banda que primeiro o acolheu nunca mais o deixou em paz e a ele se cola como um alter ego tão notório quanto grotesco. Uma persona que perdura ao longo de tantos anos de inflexões e radicalismos.
O conjunto de ensaios e entrevistas reunido em No Regrets - Writings on Scott Walker não é para neófitos. É para conhecedores e admiradores da estranha arte e dos bizarros métodos de um dos músicos verdadeiramente únicos dos últimos 50 anos. Mais que descritivo, o livro é uma discreta torrente de admiração pelo homem e a sua obra. Uma viagem pelos caminhos tortuosos da sua vida (sempre a artística, porque a pessoal é um perpétuo mistério, alimentado a rumores e mitos) e da música que desovou. Uma música que consegue erguer-se aos píncaros do belo para depois cair a pique no mais aterrador dos pesadelos.
Do advento dos Walker Brothers à abismal feitura de The Drift, No Regrets conta com o contributo de grandes nomes da escrita musical realmente importante da actualidade, como Rob Young (o editor), David Stubbs, Ian Penman ou David Toop (que assina um texto brilhante). Com a chancela de qualidade da revista Wire, o livro é essencial para os seguidores de Scott - homem, mito e magia.

5 de fevereiro de 2013

Sons Frondosos


O Verão de 1999 foi invadido e sarapintado pelos sons sobrenaturais dos Olivia Tremor Control. A música bela e surreal dos norte-americanos, mergulhada em mares lisérgicos e domando magistralmente o psicadelismo, ganhou corpo num disco sem tempo, uma obra-prima chamada Black Foliage: Animation Music Vol. 1.
A dimensão onírica que povoa este registo não acontece por acaso: durante meses, os Olivia Tremor Control inspiraram-se em excertos de sonhos pedidos aos seus fãs. Fizeram gravações de campo ao melhor estilo da música concreta e adicionaram-lhes as suas melodias alucinogéneas, o que resultou num disco tão encantador como exploratório e esquizofrénico.
Black Foliage é, efectivamente, atravessado por diversas camadas de consciência, sucessivas clivagens e ambiências caleidoscópicas de sonhos despertos e abismos ilusórios.
Um surrealismo derivado de  Dali transborda da capa e, se a música tivesse cor, a dos Olivia Tremor Control seria uma explosão clara e escura, multicolorida. A máquina psicadélica de sons estranhos e indefiníveis não pára de mover-se, orquestrando uma teia ao longo dos 27 temas que compõem o disco. No imediato, surgem à ideia Magical Mystery Tour dos Beatles e o mítico Smile dos Beach Boys, obras que encerram o espírito de estios tão imaculados como intoxicados. As melodias mais deliciosas e sumarentas são intercaladas por momentos de puro delírio que desafiam as convenções. As vocalizações erguem-se, harmónicas e emotivas, mas ao mesmo tempo distantes e a riqueza de detalhes é uma constante, o que impede que o disco seja absorvido numa única audição. Exige tempo e abertura mental para deixar escorrer a sua luxuriante torrente musical.
A Familiar Noise Called "Train Director", Hideaway, A Sleepy Company, I Have Been Floated, Black Foliage (Itself), The Sylvan Screen, California Demise (3) Hilltop Procession (Momentum Gaining) são estilhaços imprescindíveis em qualquer vitral psicadélico de excelência. Obras-primas absolutas na arte de criar pequenas canções fervilhantes de sonho e fantasia. Tal como o precipício demencial de The Bark and Below It, o negativo escuro e labiríntico das luminosas florestas sónicas que com ele coabitam.
Music for the Unrelased Film Script: Dusk at Cubist Castle, o primeiro álbum dos Olivia Tremor Control, é também muitíssimo aconselhável. Mas é no seu sucessor que a banda da Louisiana depura a sua arte, se revela em pleno e nos arrebata sem pudor nem misericórdia. Já disse que é uma obra-prima? E o Verão que nunca mais chega...

Chancelaria


A excelente editora alemã Bureau B reeditou recentemente o primeiro álbum dos seus conterrâneos hamburgueses Palais Schaumburg. O disco, datado de 1981, é uma das obras de charneira da Neue Deutsche Welle, a resposta teutónica ao pós-punk britânico. Tão dançável como cerebral, tão cativante como esquisito, Palais Schaumburg ainda hoje intriga e desarma. É um disco tão alemão na sua estética formal como anti-alemão na mensagem.
A génese do grupo incluiu dois nomes maiores da modernidade musical da nação: o mestre da samplagem Holger Hiller, aqui encarregue da guitarra e das vocalizações entre o histriónico e o acossado, e F.M. Einheit, futuro baterista dos Einstürzende Neubauten. O primeiro abandonou a banda para seguir uma carreira a solo pouco depois do lançamento do álbum de estreia. O segundo saiu ainda antes disso. Esta perda progressiva de elementos fundamentais fez com que os Palais Schaumburg fossem perdendo qualidades até colocarem um ponto final na sua existência em 1984, após três álbuns e uma mão-cheia de singles. Merece, no entanto, destaque Moritz von Oswald, um dos maiores nomes da electrónica dançante da actualidade e que foi igualmente percussionista do grupo na sua derradeira fase.
Algures entre o tratamento esquelético e minimal que os A Certain Ratio deram ao funk e o rock experimental dos This Heat, Palais Schaumburg instala-se no sistema nervoso do ouvinte como uma agulha fina que penetra a pele e por lá se move sem nunca trespassar a carne. Wir Bauen Eine Neue Stadt é o tema que abre o disco e o único single dele extraído. Um festival de irreverência anárquica, com ritmo espasmódico e vídeo a condizer:





Gute Luft e Deutschland Kommt Gebräunt Zurück surgem depois, estranhamente dançáveis, inadaptados mas acessíveis. Die Freude e Eine Geschichte incorporam os ritmos ossudos e os baixos angulares pelos quais a banda se notabilizou, assim como as demenciais vocalizações de Holger Hiller, a meio caminho entre David Thomas e David Byrne. Hat Leben Noch Sinn? é quase disco mutante, uma marcha militar a trilhar a pista de dança. E Madonna pode bem ser o melhor momento do álbum, um tremendo exercício de frenesim rítmico, impregnado de frieza eufórica.
A edição deluxe de Palais Schaumburg acrescenta-lhe prestações ao vivo, bem como os primeiros singles da banda, onde a estética se começou a delinear e peças imprescindíveis para compreender a sua evolução. Fica a interpretação de um deles, Telephon, envolta numa atmosfera quase expressionista e um belo atestado das capacidades do quarteto. Que entretanto se reuniu na formação original, voltando a espalhar brasas pelos palcos que tiverem o arrojo de os acolher.


4 de fevereiro de 2013

Ópio do Povo



Religulous, documentário de 2008 nascido da parceria entre o comediante Bill Maher e o realizador Larry Charles é, antes de mais, um objecto hilariante. Apesar da temática abordada ter o condão de pôr os cabelos em pé ou os ânimos exaltados a todos os que a defendem: as crenças religiosas e a forma como a religião se encontra organizada.
Ao longo do filme, o comediante confronta seguidores de vários cultos acerca dos princípios e da lógica das suas crenças. A ténue fronteira entre o preocupante e o ridículo está sempre presente nas palavras da maioria dos  entrevistados, assim como a improbabilidade de congregações como os Judeus por Jesus ou a Capela dos Camionistas.
Ninguém é poupado à irreverência de Maher. Cristãos, judeus e muçulmanos são escrutinados e as suas crenças viradas do avesso à procura de uma razão para a o que as fez surgir, propagar e serem aceites sem dúvidas ou contestação. No campo teológico, filosófico ou científico, Religulous (óbvio cruzamento entre religion e ridiculous) não pretende demonstrar que é dono da verdade. Acima de tudo assume que não existe verdade nenhuma, e é assim que deve ser visto, como um excelente filme de entretenimento que nos faz rir enquanto nos obriga a reflectir mais seriamente nesta matéria.


1 de fevereiro de 2013

O Pulsar de Reich

Passados 35 anos da sua edição original, Music for 18 Musicians não perdeu nenhuma da sua frescura. A obra de Steve Reich, provavelmente a mais conhecida e reconhecida do seu cânone, funciona perfeitamente quer como introdução ao minimalismo, quer para um estudo mais aprofundado dos seus mecanismos.
O contributo do nova-iorquino para a música minimal é incomensurável. Reich é um dos compositores mais vanguardistas dos últimos 50 anos e as suas teorias e práticas projectaram uma miríade de influências, das ambiências de Brian Eno ao pós-rock dos Tortoise.
Music for 18 Musicians marca a diferença no minimalismo por usar um número substancialmente maior de executantes na sua interpretação. Os vários instrumentos envolvidos, incluindo vozes femininas, apresentam-se como pequenas partículas de um todo, gotas que fluem para formar um rio sonoro. A obra divide-se em duas partes, Pulse - Sections I - IV e Sections V - X - Pulse. A estrutura é circular e assemelha-se a um fractal. As onze pequenas peças são constituídas por onze acordes, que se imiscuem, sucedem e expandem até voltarem ao ponto de partida. O pulsar sente-se constantemente. Apesar de minimal, a música é rica em detalhes, harmoniosa e melodiosa. O facto da obra ser executada por, pelo menos, 18 músicos, ajuda à percepção dessa riqueza, em que os sons, circulares e repetidos, provocam diferentes reacções sensoriais. A psicoacústica era um dos interesses de Reich por esta altura e Music for 18 Musicians é um case study perfeito para induzir reacções ao som.
Pondo de parte a frieza e os componentes técnicos e organizacionais da obra, Music for 18 Musicians é uma criação de grande beleza e extremamente cativante e recompensadora para quem se deixar flutuar no leito das suas águas. Uma composição que tanto nos consegue abrir a mente a turbilhões imaginativos, como relaxar-nos na sua cadência repetitiva. Everybody grows up with a sound, disse certa vez Steve Reich. Mas este som cresce dentro de nós.


Idade do Vinil



A norte-americana Amoeba Music define-se como a maior loja independente de discos do mundo. Como em tudo na vida, o tamanho é relativo, mas este histórico espaço parece não descansar à sombra da sua dimensão. Recentemente, os adeptos da música mais obscura, especialmente os devotos do vinil, têm um motivo de regozijo. A Amoeba Music tem-se dedicado a digitalizar e a colocar online o seu espólio mais raro, muito dele constituído por edições descontinuadas. Na secção Vinyl Vaults do seu website, a loja disponibiliza para download um largo número de discos em vários formatos e que percorrem os mais diversos géneros musicais. Tomando como exemplo o jazz, é possível encontrar relíquias de Louis Armstrong ou Coleman Hawkins a conviver sem sobrancerias com nomes desconhecidos da esmagadora maioria. Improváveis e kitsch, como Your Friendly Neighborhood Rhythm Section ou Cotton Top Mountain Sanctified Singers.
Passear por este espólio é ser teletransportado para um mundo de música vintage e desaparecida e já não é preciso ir à Califórnia para o conseguir. Para adeptos do coleccionismo, ou para quem ainda é capaz de pagar por estes artefactos, a Amoeba Music será um nome a acalentar.

28 de janeiro de 2013

Velho Testamento


Para as gerações mais novas, Tim Buckley fica muitas vezes confinado ao estatuto de pai de Jeff Buckley. O filho, tal como o pai, malogrado prematuramente, deixou-nos Grace, obra-prima que deixava antever glórias maiores mas nunca cumpridas. Um disco que se tornou marcante na existência musical de muito boa gente. O legado de Tim é bastante mais extenso, eclético e exploratório. Começou como bardo folk rock no seu primeiro álbum, adicionando temperos psicadélicos à sua música em registos como Happy Sad e Blue Afternoon. Um progressivo interesse pelo jazz e pela música de vanguarda desenhou o esqueleto de Lorca e Starsailor, as suas obras mais experimentais. E os seus últimos discos voltaram-se para territórios em que a nunca abandonada folk foi exaltada pela soul e pelo funk. Esta derradeira fase é a menos interessante da carreira do músico, se bem que Greetings From L.A. seja um dos seus registos mais celebrados.
Tim Buckley viveu uma existência de progressivos excessos. Por ironia do destino, escapou ao Clube dos 27, mas a morte levou-o aos 28 anos, calando uma das mais belas e impressionantes vozes que o mundo conheceu.
My Fleeting House é o documento visual mais completo dedicado ao músico norte-americano. Feito de interpretações ao vivo de temas que marcaram a sua história e da pontual participação de colaboradores (caso do guitarrista Lee Underwood, presença constante durante toda a carreira de Tim), este documentário de 2007 é um tesouro de arquivos que ajudaram a construir a lenda. As rendições brilhantes de clássicos como Song To The Siren, Dolphins ou Morning Glory enfatizam o génio e a voz única do cantor, uma voz que tanto cantava poesia como era ela própria um instrumento a juntar aos demais, uma entidade abstracta que encantava mesmo sendo ininteligível.
Se a memória de Jeff Buckley continua muito viva (basta ver a quantidade de doppelgängers de Grace que continuam a ser editados), a de Tim é cíclica, nunca saindo dos escalões do culto. Um génio que deu vida a outro génio, ambos torturados, ambos levados demasiado cedo. Mais que um pai, um genitor de arte.

4 de janeiro de 2013

Remédio Santo

Os Cure sempre resultaram melhor movendo-se por entre as sombras que expostos à luz. Artesã de canções pop enormes e intemporais, a banda de Crawley caracterizou-se igualmente pela bipolaridade. Pela alternância entre rigor negro e surrealismo colorido, entre rarefacções góticas e baforadas de ar fresco. À desolação hardcore de Pornography seguiu-se a pop mergulhada em psicadelismo de The Top. Ao caleidoscópio inconsistente de Wild Mood Swings seguiu-se a neblina monolítica de Bloodflowers. E, entalado entre duas obras de extrema variedade criativa e alguns tiros ao lado (Kiss Me Kiss Me Kiss Me e Wish) encontra-se o opus maximus do grupo: Disintegration.
Rezam as crónicas que o líder Robert Smith se encontrava mergulhado em águas depressivas quando o disco veio à tona. Indefinições artísticas, envelhecimento, incompreensão, eis alguns dos fantasmas que Smith invocou para a sua concepção. A desintegração emocional provocada pela confrontação com uma realidade sombria, contrária às expectativas.
Disintegration não é um disco para ouvir de ânimo leve, muito menos com os ouvidos. É algo pesadamente sentimental, que se incrusta no coração como a criatura de Alien. A música é, invariavelmente, arrastada, escura, aquosa e desavergonhadamente romântica. Insistentemente sublime. Os temas são longos e expansivos, com pontuais excepções, como os celebrados e eternos Lovesong e Lullaby, duas das mais perfeitas e irresistíveis criações dos Cure. Mas é como um todo, de uma ponta à outra, que esta obra de arte deve ser consumida. Do prelúdio à tempestade em tons de psicadelismo cinza de Plainsong à melancolia resignada e crepuscular de Untitled. O fim, a ideia de extinção, estão sempre presentes, mais ou menos metafóricos, mas sempre dilacerantes (Pictures of You, Disintegration, Closedown). Prayers For Rain e o monumental The Same Deep Water As You são momentos magistrais de profunda introspecção, tão atmosféricos como intensos. E a depressão torna-se doce no embalo oceânico de música tão onírica.
Se Disintegration não fosse um disco dos Cure, provavelmente não teria tido o sucesso massivo que conseguiu. Sucesso que deu azo a uma reedição titânica, composta por quatro discos, em 2010. Mais que merecido e ideal para quem não vive sem esta música, da mais bela e triste alguma vez feita. Um milagre sonoro para melancólicos praticantes.