28 de dezembro de 2011

2011: A Soundtrack




Os tempos estão a mudar. Por poucos motivos positivos. O mundo regurgita ecos de uma caixa de Pandora económica, que se entreabre a cada rotação sobre o seu eixo. Dentro ou fora de tempo, mais ou menos sensível ao filme da vida real, a música seguiu o seu próprio curso. Referências continuam a confortar-nos com a sua presença (Tom Waits, Kate Bush, Paul Simon), promessas já cumpridas vieram provocar-nos com ideias frescas (Bon Iver, James Blake, Destroyer). Outras promessas surgiram, com raízes no futuro ou liquidadas à partida... Mas foi a sombra de Polly Jean Harvey que se projectou mais alto, envolvendo o ano que se aproxima do fim como um regresso a escuros e góticos tempos vitorianos, a memórias em letargia acordadas pelo génio e mordacidade do seu talento. O quadro dos males do mundo foi pintado na sua Inglaterra, mas, como toda a arte destinada a ser grande, transcendeu essas fronteiras insulares. Sucedem-lhe os restantes discos de 2011 que continuarei a ouvir para lá de 2011...

1. PJ Harvey - Let England Shake

2. Bon Iver - Bon Iver

3. James Blake - James Blake

4. Tom Waits - Bad As Me

5. The Horrors - Skying

6. The Weeknd - House of Baloons

7. Girls - Father, Son, Holy Ghost

8. Oneohtrix Point Never - Replica

9. The War on Drugs - Slave Ambient

10. St. Vincent - Strange Mercy

11. The Antlers - Burst Apart

12. Shabazz Palaces - Black Up

13. Real Estate - Days

14. Jonathan Wilson - Gentle Spirit

15. tUnE-yArDs - w h o k i l l

16. Destroyer - Kaputt

17. Fleet Foxes - Helplessness Blues

18. Kurt Vile - Smoke Ring For My Halo

19. Paul Simon - So Beautiful Or So What

20. Kate Bush - 50 Words For Snow

21. Josh T. Pearson - Last Of The Country Gentlemen

22. James Ferraro - Far Side Virtual

23. Grouper - A I A (Alien Observer / Dream Loss)

24. Rustie - Glass Swords

25. Radiohead - The King Of Limbs

26. Tim Hecker - Ravedeath, 1972

27. Nicolas Jaar - Space Is Only Noise

28. Wild Beasts - Smother

29. Bill Callahan - Apocalypse

30. Anna Calvi - Anna Calvi

31. The Field - Looping State Of Mind

32. Balam Acab - Wander / Wonder

33. EMA - Past Life Martyred Saints

34. M83 - Hurry Up, We're Dreaming

35. Colin Stetson - New History Warfare Vol. 2: Judges

36. Panda Bear - Tomboy

37. Gang Gang Dance - Eye Contact

38. Björk - Biophilia

39. Thurston Moore - Demolished Thoughts

40. The Black Keys - El Camino

41. Battles - Gloss Drop

42. Drake - Take Care

43. White Denim - D

44. Raphael Saadiq - Stone Rollin'

45. Demdike Stare - Tryptich

46. Frank Ocean - Nostalgia, Ultra

47. Iceage - New Brigade

48. Arbouretum - The Gathering

49. Toro Y Moi - Underneath The Pine

50. Washed Out - Within and Without

23 de dezembro de 2011

Kosmische Kosmetik XXX

A maneira mais fácil de definir os dois grupos musicais surgidos da comuna artística Amon Düül é a seguinte: uns sabiam tocar, os outros não. Uns elevavam o activismo político e a total liberdade experimental, outros aprimoravam a técnica e a complexidade musical. Falo hoje dos segundos, conhecidos como Amon Düül II.
Os anos 60 aprimoravam radicalismos, políticos, artísticos, filosóficos. A comuna sediada na Alemanha Ocidental dava o exemplo, convindo lembrar que foi dela que surgiram as bases do famigerado grupo terrorista Rote Armee Fraktion, igualmente conhecido como Baader-Meinhof. Mas podemos separar o trigo do joio, pois os Amon Düül II eram gente de paz. Relativamente. Quem escutou a sua música e viu os seus espectáculos, notou certamente que o conceito de ordem passava por mergulhar no caos.
Iniciaram o seu trajecto discográfico em 1969, com uma obra-prima alucinada chamada Phallus Dei (literalmente, O Falo de Deus), uma das pedras basilares do krautrock. Ao segundo disco, Yeti, alcançaram o estatuto de lenda. As quatro partes que (de)compõem Soap Shop Rock precipitam-se sem alerta, como uma bátega psicadélica pronta a encharcar-nos até aos ossos. O som sujo e pouco polido do rock de garagem funde-se a vozes transviadas e divaga livremente. Um violino em marcação cerrada durante todo o tema sobrevem, magnânimo, no quarto andamento - Flesh-Coloured Anti-Aircraft Alarm - e a orgia sonora termina como começou.
She Came Through the Chimney levanta uma brisa folk, que acaba por evoluir para uma aragem de violino desvairado e órgão sem travões. O tremendo Archangels Thunderbird devolve-nos aos braços da electricidade. Cerberus volta a raptar-nos para paisagens campestres intoxicantes. Estas intermitências entre a calma e a tempestade perduram por todo o disco. O tal caos organizado que só faz sentido quando não parece fazer sentido nenhum... e em que a liberdade escoa sem limites nem imposições estéticas. The Return of Ruebezahl, o poderoso Eye-Shaking King e Pale Gallery sucedem-se numa rajada de tempo difícil de cronometrar, impossível de controlar. A fechar, uma trindade de longas improvisações: os esmagadores Yeti, Yeti Talks to Yogi e Sandoz in the Rain. Três odisseias sónicas que levaram rock e folk onde poucos se atreveram a ir. Três panaceias para almas que estejam a levar a vida demasiado a sério e necessitem de bloquear o pensamento para abrir os poros da mente à sensação, a algo escuro mas libertador.
A capa de Yeti merece, obrigatoriamente, referência. O ceifeiro de vidas (em alemão, der sensenmann) que a ilustra dava pelo nome de Wolfgang Krischke, técnico de som da banda que morreu de hipotermia sob os efeitos do LSD. Este episódio tenebroso ajuda a acentuar ainda mais a atmosfera negra e densa do álbum, ao mesmo tempo que a icónica fotografia perdurou ao longo dos anos como uma das imagens de marca, quer dos Amon Düül II, quer do próprio folclore krautrock. Que o diga Julian Cope, cuja obra de culto Krautrocksampler a ostenta na capa. Abominável somente no título, Yeti persiste como um ritual envolvente e louco, que nos tira de uma espécie de nada para nos levar a uma vaga ideia de tudo.

5 de dezembro de 2011

Kosmische Kosmetik XXIX

Dentro do Dream Syndicate, Tony Conrad expandiu as possibilidades da música até ao infinito. Ludibriando o tempo, o colectivo norte-americano caracterizou-se pela teoria e prática dos drones, recorrentes do minimalismo e das alquimias de John Cage, suspensos em horas imperceptíveis e minutos intermináveis. Igualmente conhecido como Theatre of Eternal Music, o projecto vanguardista editou várias obras de referência em que participaram, para além de Conrad, nomes maiores como John Cale, La Monte Young ou Angus MacLise. Os volumes que compõem a trilogia Inside the Dream Syndicate são hoje bíblias das aventuras musicais vividas em Nova York nos anos 60.
Fora do Dream Syndicate, o primeiro registo a solo (ou quase) de Tony Conrad surge somente em 1973. Apoiado pelos fracturantes Faust, grava com estes no rural retiro da banda em Wümme. E a contra-cultura da banda alemã cai que nem ginjas nas estratégias do americano.
Outside the Dream Syndicate é o ponto onde o drone minimal e o krautrock radical se encontram. From the Side of Man and Womankind parece começar já a meio, em tom funéreo, com uma processional batida motorik. A monotonia rítmica, meditativa - provável fonte de desconforto para tímpanos incautos - entranha-se aos poucos, revelando pequenas nuances e subtis mudanças de tom. A estrutura é semelhante à da música indiana, mas aqui a cítara dá lugar a violino, baixo, bateria e órgão ocasional. É música microtonal, que corre ao sabor de uma só nota por largos períodos, apenas para sofrer uma ligeira inflexão no seu curso sonoro. E a nossa mente resvala com ela, se nos abandonarmos ao sabor da corrente...
From the Side of the Machine é menos sonâmbula, mais circular, igualmente absorvente. Em vez de linhas rectas, baixo e bateria traçam elipses que se reabrem ao serem fechadas. Opressiva e libertadora em simultâneo, a progressão do tema propicia alucinoses, derivativas da linhagem psicadélica que educou os seus executantes. O tempo não passa como o tempo deveria passar dentro desta narcose musical. A esfera da realidade é permeável...
From the Side of Woman and Mankind encerra a primeira edição em CD de Outside the Dream Syndicate. Rondando, como os seus pares, a meia-hora de duração, trata-se do primeiro tema do disco reflectido ao espelho, de violino restringido. A segunda dose de minimalismo cósmico, servida em prato sem fundo.
A edição comemorativa do trigésimo aniversário do disco, posta na rua em 2003, acrescentou-lhe mais dois extras, fruto das mesmas sessões: The Pyre of Angus Lies in Kathmandu e The Death of the Composer Was in 1962. Ambos remetem para a elegia do compositor e amigo de Conrad, Angus MacLise. Drasticamente mais curtas na duração, variam igualmente na forma. A primeira propaga os drones indo-minimais do grosso do álbum; a segunda inclina-se para o avant rock, assemelhando-se a um concubinato nada descabido entre os Faust e os Velvet Underground.
Ostracizado e desvalorizado por alturas do seu lançamento original, Outside the Dream Syndicate recuperou actualmente o lugar merecido. Pela exploração do minimalismo no rock, por brincar com o fogo e não ter medo de arder, por estar muito à frente do seu tempo. Música de sonho fora do sindicato do sonho...

2 de dezembro de 2011

Back in Black

Godbluff assinala o regresso dos Van der Graaf Generator, após um hiato de quatro anos. O seu antecessor, o monstruoso Pawn Hearts, pôs ponto final à primeira fase da existência da banda britânica. A separação, amigável, levou o líder Peter Hammill a mergulhar a solo em águas mais profundas, resultando nalgumas das suas obras mais romanticamente escuras e sonicamente extremas. Os seus três colaboradores constantes editariam apenas um longa-duração durante este interregno - um disco totalmente instrumental, sereno e atmosférico, nos antípodas dos VdGG e sob o pseudónimo The Long Hello.
Juntos novamente em 1975, os anjos negros do rock progressivo evoluíram e convergiram para uma sonoridade mais densa e coesa, revelando um certo abandono pela complexidade técnica a favor de sólidas ambiências. Num renascimento ponderado e subtil a partir de despojos bombásticos e viscerais, os VdGG de Godbluff voltaram mais sombrios que nunca. Mas sempre incatalogáveis, sem cedências e sem precisarem de guitarras para serem electrizantes.
Desta vez, será a música a descrever-se a si própria. Um imortal concerto captado na Bélgica em 1975, guardou para a posteridade a interpretação integral dos quatro temas de Godbluff. Este será, igualmente, o documento definitivo para apreciar os ingleses no início da sua melhor e mais prolífica fase - no espaço de um ano editariam ainda a obra-prima Still Life e o mais abrasivo World Record. Que as luzes se apaguem e se dê início ao espectáculo...

30 de novembro de 2011

Lusofonia VII

António Ferreira parece colocar-nos à vontade quando assina o seu primeiro álbum como Tózé Ferreira. Mas o que se ouve em Música de Baixa Fidelidade é uma quietude inquieta, densidade de sons que evocam uma melancolia negra, pós-industrial. O artista apresenta-se com um diminutivo, mas a sua criação é hiperbólica.
Datado de 1988, Música de Baixa Fidelidade mantém-se como um dos discos mais desconcertantes e fascinantes do panorama contemporâneo português. A sua concepção inicia-se na Holanda, onde Ferreira, então estudante de Sonologia, cria amizade com o texano Rodney Washka II. Dessa frutífera troca de ideias surgiriam as peças More Adult Music e This is Music, as it was Expected, exercícios computorizados que sustentam a récita de dois textos pelo americano. Na primeira, a abstracção sintética, esparsa e atonal funciona como prolongamento das palavras, uma narrativa circular tão surrealista como impenetrável. A segunda assemelha-se a uma pregação apocalíptica, que se arrasta, monocórdica, sobre um escuro e penetrante circuito sonoro, como se as palavras se esgotassem nas máquinas e estas acabassem por prevalecer.
As cinco composições restantes do disco são inteiramente instrumentais. A mão humana é praticamente imperceptível, dado que todas são o resultado de uma complexa equação de computadores, samplagem e sintetizadores. Música programada, em que o computador interage com o criador, ajudando-o no processo, artificialmente intuitivo. Evoca Robert Ashley e faz pensar num Morton Subotnick mais contido. Abraça elementos da musique concrète e projecta harmonias em regime matemático. O Verão Nasceu da Paixão de 1921 brota de processadores melancólicos, criando atmosferas de beleza rara, quase alieníngena. Algumas Pessoas Olharam para Sul e Viram o Deserto é feita de ecos e sopros puramente sintéticos. Máquinas com nervo, que parecem tocar-nos com a ponta dos seus terminais e mostrar-nos o vazio do ciberespaço. Um Som, Seguido de uma Cena Negra e Malva acrescenta um piano de contornos Cageianos e aproximações melódicas à electrónica experimental dominante, mas a frieza cerebral e a ambiência laboratorial nunca lhes cedem terreno.
A Força Silenciosa do Possível e Europa, Depois da Chuva não fizeram parte da edição original em vinil. Foram integradas na versão em CD lançada em 2003, aquela que realmente interessa ter. Apesar de possuírem a mesma genealogia, revelam-se mais ásperas e escuras, invasivas de desolação electroacústica. São o exemplo perfeito da baixa fidelidade e da sua estranheza soturna e desapegada.
Música de Baixa Fidelidade varia entre o estudo académico das possibilidades dos computadores como órgãos reprodutivos de música e o próprio acto de experimentar a criação. O seu eco ressoa pela electrónica periférica de muitos projectos actuais, quer dentro, quer fora de portas, mas não há amor como o primeiro e a paixão de António Ferreira revelou-se tão exploratória quanto assolapada.

28 de novembro de 2011

Lusofonia VI

1977 foi o ano em que o punk destronou definitivamente o rock progressivo, criando uma nova ordem musical que relegou quaisquer lampejos sinfónicos para a obscuridade. Mas, se as tendências ditadas no Reino Unido declaravam que era melhor ser Pretty Vacant como os Sex Pistols que ouvir as Wonderous Stories dos Yes (e lá isso é verdade...), o burgo lusitano vivia por esta altura o seu idílio progressivo.
Editado nesse ano, Mistérios e Maravilhas dos Tantra é um dos grandes marcos do género em Portugal. Talvez a medalha de prata num pódio cujo lugar cimeiro é, indubitavelmente, ocupado por José Cid e o superlativo 1000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. As semelhanças entre ambos começam logo pela história de vida (e de carreira artística) dos seus mentores. Se Cid enveredou pelo caminho que todos conhecemos e o bom gosto lamenta, o vocalista dos Tantra não fez a coisa por menos. Era ele Armando Gama, futura lenda da Eurovisão, futura voz das canções da série infantil Sport Billy e futuro autor (com a esposa Valentina Torres - os John Lennon e Yoko Ono nacionais) de um álbum intitulado Tu Tens Outra...
Voltando a falar de arte, o que se encontra no primeiro disco dos Tantra é música bem pensada, bem tocada e de inegável qualidade. Rock progressivo até à medula, puro e duro, sem fugir um milímetro aos clichés do estilo. E um regalo para os seus apreciadores. Épico, fantasista e imaginativo, Mistérios e Maravilhas não envergonha a nação perante obras dos Genesis ou dos Gentle Giant. Mas a sonoridade, sempre atenta aos aspectos melódicos e polvilhada de arabescos, inclina-se mais para Itália e para terras do Sul. À Beira do Fim é um enorme portal colorido a abrir o disco, pleno de variações de tempo e de ambiências contrastantes. Os quatro elementos dos Tantra revelam não ter medo de mostrar o que valem e atiram-se com unhas, dentes e arrojo a uma peça tão labiríntica quanto límpida. O igualmente teclista Armando Gama só se voltará a ouvir no último tema, o iluminado Partir Sempre, em que a conexão rigorosa e intensa baixo/bateria se deixa entrelaçar pela emotividade da voz e o calor da guitarra.
Se o guitarrista Manuel Cardoso carrega nos ombros um instrumento que parece, por vezes, possuir vida própria, a personalidade vincada de Mistérios e Maravilhas deve-se igualmente à inspiração do baterista Tó Zé Almeida, um mestre das baquetas que ajuda a levar o álbum para os meandros da fusão, atirando-se a um furor jazzístico extasiante em Máquina da Felicidade. Mérito igualmente para Américo Luis, que prova não ter feito figura de corpo presente, arrancando um poderoso e viperino riff no complexo e frenético tema-título. Dois curtos interlúdios (Aventuras de um Dragão num Aquário e Variações sobre uma Galáxia), à guitarra acústica e ao piano, refrescam o disco por entre a torrente abrasadora que o arrasta.
O primeiro álbum dos Tantra foi também o único construído por este exemplar quarteto. Pouco tempo depois da sua edição, Armando Gama saiu do grupo, que, entre o culto e o esquecimento, irrompeu em várias encarnações. Mistérios e Maravilhas continua a ser um dos discos mais marcantes da música portuguesa. Hoje soará um pouco datado, é certo, bem como fruto de um atraso atávico do qual Portugal sempre sofreu em relação a novas tendências externas. Mas há 35 anos revelava o brilho cegante da arte liberta da clausura da ditadura. Um documento histórico feito de idealismo musical.

21 de novembro de 2011

Jazz Core

Durante a primeira metade dos anos 70 do século XX, os Nucleus foram um bastião de bom gosto. Espalharam originalidade, charme, aventura e fleuma britânica ao longo dos seus primeiros discos, ao mesmo tempo que ensinaram o jazz a falar novas línguas.
Apesar dos disfarces, o jazz sempre foi o núcleo do grupo liderado pelo enorme Ian Carr. Ao longo desses verdes anos, de metamorfoses e da erosão das musas, os Nucleus nunca deixaram de jazzar com esmero. Mas também nunca deixaram de flirtar com o psicadelismo, nem abandonaram o sindicato do rock progressivo.
Em 1970, Elastic Rock entra de rompante e, praticamente, funda a cena jazz rock britânica. O primeiro sinal desponta na capa. A cascata lávica que escorre de uma erupção vulcânica, alegoria lógica à fusão. Depois vem 1916, com uma bateria que se estilhaça e lança chispas em todas as direcções. Esta pequena explosão serve de introdução a Elastic Rock, elegante e deslizante peça, desenhada entre sopros quentes e cordas soltas. Striation interrompe o elo, num curto estertor improvisado, ao que se seguem Taranaki e Twisted Track, belíssimos momentos de um jazz nocturno e apaziguador, mas ardente no seu núcleo. Os dois episódios de Crude Blues põem mais achas na fogueira e o jazz vai sendo progressivamente invadido pela energia primária do rock1916 (Battle of Boogaloo) solidifica em definitivo o magma do tema de abertura, fundindo os sopros de Ian Carr e Karl Jenkins à guitarra em espiral crescente de Chris Spedding.
É já na recta final de Elastic Rock que surge o seu tema central, Torrid Zone. É aqui que as influências do Miles Davis desconstrucionista estão ao rubro e que jazz e rock disputam acesamente o troféu da música. Stonescape e Speaking for Myself, Personally, in My Own Opinion, I Think... são curtos interlúdios que assentam na personalidade dos solos mais que em composições estruturadas. O transe fluido e complexo é retomado em Earth Mother, com a recorrente base rítmica das melodias a debitar um vigor escorreito e irrepreensível, tal como sucede na energética conclusão do álbum, a fervilhante Persephones Jive.
Quente, melódica e hipnótica, a primeira obra dos Nucleus será sempre um belo pretexto para aquecer as noites frias. Pouca luz é recomendável, talvez no bar perfeito (aquele que não existe...). Conduzir a horas mortas pela cidade é igualmente um bom método para o absorver. E o disco poderia também chamar-se Elastic Jazz que ninguém daria pela diferença...

9 de novembro de 2011

A Marca Amarela VII

Keiji Haino é um camaleão que pouco muda de cor. Um réptil a preto e branco, que irradia igualmente vários tons de cinzento. Move-se discretamente pela música desde os finais dos anos 70, mas projecta uma sombra gigante no meio underground. Para além de ser alavanca de diversos projectos mais ou menos fugazes (como os Knead ou os excelentes Vajra), constam do currículo do japonês colaborações excepcionais com várias individualidades e colectivos consagrados. Destas, merecem especial louvor as gravações com Derek Bailey, Boris e o trio formado com Jim O'Rourke e Oren Ambarchi.
A solo, Keiji Haino detém uma extensa e eclética obra, dezenas de registos que absorvem e regurgitam estilos vários, que vão do rock ao noise, dos blues ao experimentalismo mais inóspito. Tudo filtrado através dos omnipresentes óculos escuros de Haino, resultando numa musicalidade catártica, em que a delicadeza e a aspereza coabitam numa quase esquizofrenia.
Os vários tons de cinzento supracitados não significam que podemos retirar aleatoriamente qualquer obra a solo do nipónico para demonstração das suas artes. Apesar da aparente imutabilidade do estilo, há nuances que os demarcam. A escolha (pessoal e subjectiva) para levantar um pouco do véu negro e translúcido da música  de Keiji Haino recaiu sobre I said, This is the Son of Nihilism - disco de 1995, reeditado em 2003 e com a chancela de qualidade da Table of Elements.
É um delírio com uma hora de duração, comparável ao infame Metal Machine Music de Lou Reed ou aos drones de Stephen O'Malley e do igualmente nipónico Merzbow. A guitarra, hoje e sempre o instrumento de eleição do músico, precipita-se em queda livre, em direcção às trevas, em danação sonora. A acompanhá-la, apenas a voz de Haino, liberta de palavras, num lamento intermitente de anjo caído. Um quarto de hora depois, a queda é amortecida e amparada por mão invisível, o peso transforma-se em pena, o suplício extingue-se. A guitarra adopta a posição fetal, a música é intra-uterina, a voz um suspiro gritado. A partir daqui, a sucessão entre ordem e entropia instala-se. À paz ilusória segue-se a catarse e o nada sobrevém nos momentos finais da peça. E assim uma guitarra, deixada sozinha no escuro, dá à luz o niilismo...

A Marca Amarela VI

É um dado adquirido que a música electrónica moderna em todas as suas variantes não existiria sem os Kraftwerk. O sopro da vida que injectou animismo às máquinas partiu dos alemães, mas foi no Oriente que elas assumiram o estatuto de hedonismo programado. Tudo graças a um colectivo de Tóquio conhecido como Yellow Magic Orchestra. Trio visível mas quarteto mascarado (Hideki Matsutake foi sempre um quarto elemento, escondido na ostra dos artifícios sonoros...), a electrorquestra nipónica foi pioneira no surgimento e expansão de toda a música de dança, bem como da pop electrónica assente em melodias suculentas.
O nome mais sonante do grupo foi, sem dúvida, Ryuichi Sakamoto. Musicalmente ubíquo e influente desde então, forma um triângulo equilátero com os seus pares Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, uma geometria artística que projecta a Yellow Magic Orchestra como um monolito coeso. 1978 é o ano da afirmação, com a edição do primeiro e marcante álbum homónimo, preenchido por temas coloridos e imaginativos e pela recorrente tendência para a miscelânea entre sons orientais e ocidentais (Firecracker é um magistral exemplo...). 1979 depura o material e traz ao mundo o provável grande clássico da YMO: Solid State Survivor.
Technopolis entra a matar, sem vergonha de ser melódica e despudoradamente dançante. Contra olfactos não há argumentos e aqui sente-se o perfume disco futurista do insígne Giorgio Moroder. Absolute Ego Dance aumenta os níveis de energia, sustém os níveis de melodia e deve ter feito muito japonês pular de excitação nas caves de Tóquio por estes dias... Day Tripper é uma hilariante versão electrónica do clássico dos Beatles, quase tão demencial como a desconstrução que os Devo exerceram sobre (I can't get no) Satisfaction dos Rolling Stones. Mas Solid State Survivor não vive só de irreverência e alegria desbragada. O prazer físico do disco é, acima de tudo, um prazer mental. O tema-título conjuga ambos na perfeição e faz-nos imaginar os Kraftwerk possuídos pelo espírito de uma noite na lendária Studio 54. A roçar o sublime, Rydeen e Behind the Mask são clássicos absolutos da electrónica, temas samplados e remisturados até à exaustão desde a sua génese, mas imbatíveis e indissociáveis do seu génio original. Castalia e Insomnia testemunham a rara lentificação do álbum e aproximam-se da geografia característica das paisagens ambientais. Duas micro-delícias, coisas perfeitas que só os japoneses conseguem produzir tão bem em formato tão diminuto.
Solid State Survivor é um disco multiusos, um trajecto ambíguo. Tanto nos pode transportar para o imaginário arcaico dos jogos para ZX Spectrum como para a Tóquio iluminada/desolada de Lost in Translation. É muito provável que alegre a existência de miúdos e graúdos. Foram os Yellow Magic Orchestra os Kraftwerk nipónicos? Sim, mas com o expressionismo exuberante de um temaki sushi...

21 de outubro de 2011

Santa Aliança

Foram as estradas do minimalismo que ali os levaram. John Cale, músico clássico transformado pela electricidade e visceralidade do rock e Terry Riley, músico clássico infectado pelo jazz livre e pelos sons do Oriente, encontraram-se num vértice em 1970. Aí lançaram a primeira pedra na fundação de Church of Anthrax, disco cooperativo que apenas viria a luz do dia passado um ano. E a pedra basilar de Church of Anthrax é a música minimal. Tanto Cale como Riley eram dois dos mais proeminentes seguidores desta corrente, professando ensinamentos derivativos das suas experiências com John Cage ou o fundamental Theatre of Eternal Music, em que militavam igualmente nomes como Tony Conrad ou La Monte Young.
Após ter sido despedido dos Velvet Underground, John Cale iniciou uma frutuosa carreira a solo, iniciada em 1969 com o excelente e estranhamente acessível Vintage Violence. Terry Riley trazia na bagagem os recentes e imprescindíveis A Rainbow in a Curved Air e In C, duas obras-primas da música de vanguarda dos anos sessenta. A miscelânea de ideias dos dois homens origina um disco que parece ser rock composto por músicos clássicos, bem como música clássica tocada como se fosse rock. O regime minimalista é a única coisa que não arreda pé de Church of Anthrax. Assim como a toada progressista das peças, futuristas na forma, suspensas no tempo em que se desenrolam.
O disco abre com o tema-título, que se ergue em rasgos desiguais de Hammond e saxofone, contrastando com a cadência repetitiva e quase obsessiva do ritmo. À medida que os minutos passam, a intensidade aumenta, numa espiral arrasadora, semelhante ao voo de um insecto confinado a um espaço diminuto. Uma placidez estática instala-se com a chegada do belo The Hall of Mirrors in the Palace at Versailles. Piano e saxofone degladiam-se introspectivamente, mas nunca de costas voltadas. A música parece eterna, sentindo-se a aproximação conceptual às ragas indianas. E o amplo salão de espelhos do Palácio de Versalhes materializa-se perante nós, interminável e majestoso, num magnífico chiaroscuro musical.
The Soul of Patrick Lee constitui o momento mais diletante do álbum. A única canção, vocalizada por um misterioso Adam Miller, cujo timbre é, em muito, idêntico ao de John Cale. Ficará para sempre a dúvida se este Adam Miller não é mais que o próprio Cale em registo aveludado, ou um desconhecido escolhido pela similariedade na voz. A canção, essa, destoa do que vem para trás e do que se seguirá. É um curto interlúdio vocal, no que geralmente costuma ser instrumental. Uma bela melodia, contemplativa e melancólica, que tresanda ao Cale da primeira fase por todos os lados. O disco retoma o seu curso normal com Ides of March, um longo e veemente exercício minimal, tão cerebral como apelativo ao movimento. O feeling jazzístico transborda livremente, tornando esta a peça onde a improvisação é raínha e senhora. The Protegè, quinto e último tema, é, por sua vez, aquele onde o rock mais se ingere. Guitarra, baixo e bateria servem de suporte para um piano destemido e gingão, que nos retira de idílios meditativos e nos devolve às ruas.
Um dos charmes de Church of Anthrax acaba por ser a procura de sintonia, que ora se alcança, ora se esfuma, entre duas almas pouco gémeas mas muito inspiradas. Algures entre o erudito e o vernáculo, é um disco sem falhas, ilustrativo de facetas menos exploradas de dois músicos cujo talento e influência são sobejamente conhecidos.

15 de outubro de 2011

Memories of a (Free) Festival

Terminou há exactamente uma semana mais uma edição do Out.Fest. Nunca tinha passado tanto tempo no Barreiro como nos cinco dias desta celebração de música exploratória... Do princípio (com Alexander von Schlippenbach, que recuperou o trio do seminal Pakistani Pomade de 1976, associando-se em palco aos excepcionais Evan Parker e Paul Lovens) ao fim (com uns Oneida a cilindrar até às quatro da madrugada o público resistente), o evento foi um éden para as mentes musicais mais afoitas. Dos drones martirizantes de Stephen O'Malley aos blues ruminantes e apocalípticos de Bill Orcutt, passando por uma excelente folie a deux entre Sei Miguel e Norberto Lobo, houve lugar para tudo um pouco. E para todos um pouco.
A surpresa mais agradável talvez tenha sido o projecto KWJAZ, do solitário Peter Berends. Ocasional colaborador dos excelentes Rangers, este norte-americano pratica uma sonoridade algures entre os lavores mais pacatos de Conrad Schnitzler e as coloridas hipnagogias de James Ferraro. Em suma, electrónica cerebral com laivos de emoção e ritmos ocasionais.
Vale a pena perscrutar o único registo até à data desta enigmática entidade. Dividido em duas peças, Once in Babylon e Frighteous Wane, está directamente prescrito a quem pretenda acrescentar estados hipnóticos e semi-letárgicos à sua dieta mental. A primeira tranche é servida em salva hipnagógica, como se memórias de uma noite festiva dos anos 80 tivesse sobrevivido em animação suspensa para o que dela resta ser reanimada cem anos depois. Fora de tempo, fora de sítio, a tentar fazer sentido nas nossas cabeças. A segunda imerge até ao pescoço em lodaçais de electrónica incógnita, com breves tragos do dub cósmico que o mestre Dieter Moebius tanto gosta de oferecer (coincidência ou não, foi ele o cabeça de cartaz na noite de KWJAZ...) e mais samplagem rebuscada de um passado qualquer.
Damo Suzuki, o mais lendário vocalista dos mais que lendários Can, também esteve no Barreiro. Tive o imenso prazer de conversar largos minutos com ele e de perpetuar o encontro. Mais tarde, pouco percebi das palavras que o pequeno gigante entonou em palco. Mas, perante a intensidade dos mantras eléctricos debitados, isso não interessa para nada. Obviamente, foi um enorme e extasiante concerto...

No Place Like Home

Mais logo, haverão manifestações. Pacíficas ou quezilentas, envoltas em algazarra ou num silêncio ensurdecedor, elas espalhar-se-ão por todo o mundo como metástases de mal-estar. Algo parecido com uma mensagem será difundido, os receptores farão dela a interpretação que quiserem. Esperemos que essa mensagem seja correctamente direccionada para a oligarquia que governa as nossas democracias. Porque vivemos num tempo em que o poder democraticamente eleito, seja qual for a sua facção, se encontra subjugado a um governo de poucos que realmente detem o verdadeiro poder: o financeiro. E há que reclamar o que é nosso por direito e universal porque não tem proprietário. Passada a confrontação, fica uma metáfora do que está em jogo...


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14 de outubro de 2011

Lusofonia V

É graças a Plux Quba - Música para 70 Serpentes, que se perdoa a Nuno Canavarro ter colaborado temporariamente com os horrendos Delfins. Este disco de 1988 é uma estranha e fascinante contribuição para a génese da verdadeira música alternativa lusa.
Produto da originalidade visionária da Ama Romanta é, mais que tudo, um produto superlativo da mente do seu autor. Um disco que carrega quase um quarto de século de existência, mas que soava na altura como Fennesz, Ryoji Ikeda ou Alva Noto soam hoje. Mas na altura não se falava em coisas como Glitch e o uso da electroacústica não era considerado tão moderno como agora. Fora do reduzido circuito de adeptos nacionais do experimentalismo, quase ninguém o ouviu. Quase? Talvez não...
Passados todos estes anos, o que continua intacto em Plux Quba é o estranho poder de encantar e inquietar em simultâneo. A música não é fácil, mas não sobrecarrega os neurónios sem os conseguir penetrar. Não é simples, mas também não necessita de se impôr com o engenho de um sofisma. Acima de tudo, é um idílio electrónico, um sonho diurno sintetizado. As memórias arcaicas e distorcidas de um ser humano organizadas por precisas mãos cibernéticas.
Há uma ponte constante, que muitas vezes evolui para simbiose, entre a dimensão humana e a dimensão virtual. Entre o real e as suas possibilidades. Aqui, as várias possibilidades de olhar a realidade saem sempre vitoriosas, como se a percepção que transborda fosse sempre a imaginária. A grande parte dos temas de Plux Quba não tem título. O anonimato acentua a abstracção e projecta-nos no domínio da sensação pura. O quarto e o último temas são particularmente belos e evocativos, algo que não soaria deslocado nas Music for Films de Brian Eno. Há vozes que surgem, a espaços, acentuando o convite à introspecção e à exploração do próprio inconsciente, como em Wask e Cave, ou nas regressões espectrais de Crimine e Bruma. Todos eles magníficos, por sinal... E sobram resquícios de electroacústica, musique concrète e da tal electrónica desarrumada e imperfeita que tanto eco faz hoje, por exemplo na Raster-Noton. Esta é apanhada em flagrante delito nos sexto e sétimo temas sem-título, tal como em Wolfie e n' O Fundo Escuro de Alsee. No fim, voltamos a duvidar que isto tenha vindo ao mundo em 1988. E que ninguém tenha dado por isso. Mas deram. Os alemães Mouse on Mars citam Plux Cuba como uma grande influência nas suas próprias obras e o disco foi alvo de reedição por outro convertido confesso: Jim O' Rourke, que tratou de reeditá-lo através da sua editora Moikai em 1998. É redundante considerar a obra mais famosa de Nuno Canavarro como um dos discos de referência da música de vanguarda portuguesa. E é preferível ouvi-lo agora, tarde e a más horas, que ser vencido pelo esquecimento.

Portugrécia?

À medida que rastejamos lentamente para o buraco da condição grega, urge recuperar este documentário. Quem não viu, que desperte. Quem viu, que continue a militar. Resta saber se ainda vamos a tempo de evitar a coabitação na mesma masmorra com os nossos companheiros helénicos de genocídio financeiro...

8 de outubro de 2011

Aguarela

Algures em 1972, Mark Fry gravou um disco de belas canções intitulado Dreaming With Alice. Condenado ao culto, assim se manteve até hoje, qual obra obscura destinada a vir apenas parar às mãos de quem arregaça as mangas para a retirar do fundo do baú.
Fry era um pintor britânico. Ou talvez um estudante de pintura apaixonado pela música. Certo é que não será lembrado pelos seus quadros, mas sim pelas suas aguarelas musicais, coloridas por uma folk rusticamente sofisticada. E foi em Itália que as suas oníricas e encantatórias composições foram enaltecidas ao ponto da conservação. Roma viu nascer Dreaming With Alice, disco que lentamente se exportou, como um embrião que cresce em reclusão e se desenvolve de costas voltadas para o mundo. Hoje, é considerado uma pérola da folk psicadélica, daquela que nos faz sonhar em torno do seu sonho.
Disco de remendos e rendilhados, Dreaming With Alice abandona o conceito de tema-título para levar e trazer a canção-base ao longo do seu percurso, em pequenos e evocativos trechos. Como uma linha condutora que nos aproxima de Alice para logo nos afastar dela. O mote não é muito diferente dos artesãos mais celebrados da folk britânica dos finais de 60, como Nick Drake, Roy Harper ou o recentemente (e tristemente) falecido Bert Jansch. As composições são esmagadoramente acústicas, os arranjos bucólicos e pastorais, evocativos de uma Inglaterra preservada no tempo, vasta e verde, imutável na sua essência, impenetrável nos seus bosques sem idade. Mas as canções são mais primaveris que outonais, mais propícias a madrugadas em que o Sol desponta, vermelho, no levante, que a soturnos ocasos outonais ou a ruminações existenciais no frio da noite. Meditações solitárias, mas no conforto da presença imaginada da musa Alice.
Dreaming With Alice - a canção - desdobra-se em oito momentos ao longo do álbum. Cada vez que surge, é como um mergulho lento em águas doces. Uma melodia envolta em sombras, mas que transporta claridade em cada verso. As profundezas da Velha Albion emergem em canções soberbas e suavemente assombradas como The Witch, A Norman Soldier e a evocativa Lute and Flute. Mandolin Man aproxima-se (e bem) dos territórios folk rock de Roy Harper, enquanto que Down Narrow Streets, Song for Wild e a magnífica Roses for Columbus são tatuagens eternas gravadas no coração da folk psicadélica. A terminar, Rethorb Ym No Hcram enfatiza o tom weird do álbum, uma espécie de Tomorrow Never Knows dos Beatles em regime lamento gaélico in reverse. Por vezes, Mark Fry soa a um George Harrison vagueando por rurais paisagens...
Dreaming With Alice - o album - é porto obrigatório para os amantes da folk britânica degenerativa. Um organismo pluricelular cujas marcas podem não ser flagrantes, mas estão presentes naqueles que hoje reinventam a música que nunca foi moda, pois está há muito gravada no nosso ADN. De realçar que Mark Fry lançou recentemente um novo álbum (somente o terceiro em toda a sua carreira - o segundo, Shooting The Moon, data de 2008). Intitula-se I Lived In Trees e, num acesso à Vasco Pulido Valente que me deu agora, espero que seja alvo de verborreia construtiva por parte da crítica especializada. E que Mark Fry esqueça a pintura de vez...

4 de outubro de 2011

A Marca Amarela V

Estreou-se a tocar nos idos anos 80, mas só recentemente lançou o seu primeiro registo a solo. A espera foi longa, o resultado compensador. Michio Kurihara, um dos melhores guitarristas nipónicos  de sempre, foi também presença marcante em muitos projectos do rock amanhado no país do sol nascente. Co-criador dos excelentes White Heaven, uma das bandas mais marcantes do revivalismo psicadélico japonês, destacou-se principalmente pelo génio emprestado a discos dos seus compatriotas Ghost e Boris. Mas Sunset Notes, a sua estreia de 2005, é a obra maior do seu longo percurso.
Subordinado ao tema muito zen do pôr-do-sol, o disco atravessa estados de alma nostálgicos, reflexivos, crepusculares. A guitarra é imperatriz, serpenteando numa miríade de cores, as seis cordas em midríase quase constante. A tónica é colocada nas emoções, mas o disco nunca deixa de ser rock. Do bom. Duro e físico em Time to Go; melódico e clássico em Do Deep-Sea Fish Dream of Electric Moles; cristalino e minimal em A Boat of Courage.
Numa obra dominada pelas composições instrumentais, Wind Waltzes e The Wind's Twelve Quarters fazem a diferença. A cantora Ai Aso empresta a sua voz límpida e suave a estas delicadas canções, igualmente etéreas e introspectivas, que sopram sobre nós como um vento morno. E a guitarra que, se tivesse sete cordas seria um arco-íris, move-se como um espírito dominado pelas mãos do feiticeiro Kurihara. Um espírito irrequieto, que ora flutua meditativo em The Old Man and The Evening Star, ora se inflama num belo arremedo surf rock em Twilight Mystery Of A Russian Cowboy, ora se resume em essência psicadélica no soberbo Pendulum On A G-String - The Last Cicada.
Num tempo em que parece quase vergonhoso usar e abusar da guitarra eléctrica, Michio Kurihara recuperou a energia mais vibrante do instrumento e superou os rituais iniciáticos para ser ele, agora, o mestre. A celebração começa ao pôr-do-sol.

3 de outubro de 2011

Raízes Futuras



Da oferta constante e crescente de rádios online, a Dublab é uma das propostas mais interessantes e consistentes. Surgida, em formato rudimentar, no final do século XX, esta emissora californiana tem vindo a evoluir e a superar-se a cada momento. Dotada de um extenso e venerável número de colaboradores e DJ's, a Dublab tem-nos presenteado com música não menos que extraordinária, em que a liberdade exploratória contracena com sons tradicionais. Nomes provenientes de diversas áreas musicais, tais como Damo Suzuki, Mia Doi Todd ou Daedalus, convivem salutarmente e oferecem-nos deliciosas e exclusivas mixtapes.
A oferta é extensa, não se resumindo em absoluto à música. A área subordinada às artes visuais merece igualmente visitas frequentes. Amantes da vanguarda, satisfaçam o vosso desejo de ar puro artístico ...

21 de setembro de 2011

A Arte da Cópia


In Praise of Copying (2010) é o segundo livro do escritor, jornalista e professor britânico Marcus Boon. A sua primeira obra, um ensaio sugestivamente intitulado The Road of Excess: A History of Writers on Drugs, aborda a ligação milenar entre drogas e escritores e como o seu uso influenciou a criatividade e a tradição literárias. É imprescindível para quem queira conhecer uma vertente diferente da história e evolução da literatura.
Especulo se o título do texto que se seguiu foi inspirado em In Praise of Learning, disco de 1975 dos vanguardistas transgressores Henry Cow. Certo é que a transgressão envolve as diferentes obras. O livro de Marcus Boon é um tratado sobre a génese e disseminação da cópia na arte e cultura humanas desde os seus primórdios. Um estudo do proibido. Uma abordagem filosófica a algo que, segundo o autor, está inerente ao género humano e tem contribuído indelevelmente para o seu crescimento. Uma dúvida é passível de assaltar-nos: Quem nasceu primeiro, o original ou a cópia?
In Praise of Copying encontra-se disponível para download gratuito aqui. A obra deu azo igualmente à criação de um blog inteiramente dedicado ao tema da cópia. A obra restante e outros assuntos de interesse referentes a Marcus Boon podem ser pesquisados aqui. Go ahead, take a copy!

1 de setembro de 2011

Kosmische Kosmetik XXVIII

Zuckerzeit marca um ponto de viragem definitivo na arte dos Cluster. Após duas seminais quedas no vazio cósmico, encetadas em Cluster 71 e Cluster II, o universo musical do duo Roedelius-Moebius começa a formar ordem a partir do caos. Chegou o tempo do açucar, como o título do álbum indica, e esse tempo coloca a electrónica ao serviço do prazer auditivo. Mas o adoçante é o aditivo que predomina neste marcante álbum de 1974. O açucar é um ingrediente demasiado natural para estes paraísos artificiais e robóticos.
Foi notória a influência dos Neu! e, particularmente, do seu membro Michael Rother, nesta nova versão dos Cluster. Juntos, Rother, Moebius e Roedelius haviam formado os Harmonia, colectivo essencial na aproximação da música das esferas à electrónica de vanguarda. Rother senta-se agora na cadeira do produtor e Zuckerzeit carrega na bagagem as memórias deste encontro, irradiando o entusiasmo de uma jornada de descobertas.
Durante o seu longo tempo de vida, os Cluster sempre oscilaram entre as tendências dos seus dois elementos. Moebius foi sempre o mais experimental, Roedelius o mais melódico. Os trabalhos a solo que ambos editaram paralelamente não deixam margem para dúvidas. Neste sentido, Zuckerzeit é um disco dividido em dois, os seus dez temas assinados por duas penas diferentes em que a paridade impera: cinco para cada um.
Tudo aqui tresanda a visionário, a profecias de pop electrónica. Farripas de humanidade por entre a frieza das máquinas. Sem bugs ou outras falhas, as peças do álbum pairam e fluem como um sonho mecânico. Hollywood, Rosa, Fotschi Tong ou Heisse Lippen (todos assinados por Roedelius) fermentam numa conjunção entre melodias vaporosas e futuristas e variações inventivas de ritmos motorik. O ripostar de Moebius (Rote Riki, Caramba, James ou Rotor) é mais agressivo, envolvendo o disco em tons de escuro. Mais cerebrais e provocadores, estes exercícios ajudam a fazer de Zuckerzeit a obra variada, completa e fundamental que ainda hoje é.
Enquanto o objectivo dos Kraftwerk residia na transição do Homem para a Máquina, os Cluster iniciaram aqui o inverso. A Máquina transmuta-se no Homem, e talvez seja por isso que a música do duo berlinense não soe tão perfeita e precisa como a dos seus pares de Düsseldorf. Aqui somos transportados para o reino cibernético das emoções...

18 de agosto de 2011

Dieta Mediterrânica X

O nome Riccardo Zappa leva, inconscientemente, a uma busca mental pela árvore genealógica que o ligará forçosamente a Frank Zappa. Mas o italiano e o americano apenas comungam do amor pela guitarra. E nem nisso são unânimes, pois o Zappa gringo foi um virtuoso da guitarra eléctrica e o Zappa transalpino é um virtuoso indefectível da guitarra acústica.
Separado assim o trigo do joio, nada como apreciar em toda a sua plenitude o primeiro álbum deste artesão das seis cordas, ainda em actividade. Celestion, disco de 1977, surgido em pleno declínio da fase de ouro do Rock Progressivo italiano, é uma obra nada decadente e onde classicismo e modernismo se unem. Totalmente instrumental mas não totalmente um solilóquio, abrange com enorme originalidade as diversas facetas e possibilidades da guitarra acústica. Frammenti é o trecho mais expansivo de todo o álbum. Uma peça que transcende os dez minutos e que expõe uma guitarra pejada de efeitos, que não encobrem a mestria. A tradição italiana de melodias a roçar o divino sem serem necessariamente sacarinas, impõe-se. Um intermezzo congrega a banda que acompanha Zappa e transforma-se numa estranha excursão rock, liderada por uma guitarra acústica electrizante. Ao rumar para o destino, Frammenti volta a ser clássica, a guitarra a soar como o sopro de muitas eras.
Tre e Quattro Quarti enceta a mesma viagem que o tema anterior, mas encurta os passos. A vertente clássica transborda com intenção redobrada, assim como a reviravolta rock acentua a energia. Uma bizarra ponte entre arcaísmo e modernismo. Segue-se o tema-título, a confirmar que estamos perante um disco de grande beleza e não apenas um disco de um grande guitarrista. Ela, a guitarra, soa aqui como um objecto surreal, a raiar o electrónico. Quando a bruma se dissipa e deixa vislumbrar os traços do rock, ficamos perante um imaginativo exercício, em que o baixo gordo e a bateria algo funky administram um raro exotismo à hegemonia da guitarra.
Sonata Mediterranea é uma brisa morna e suave de folk italiana, que apetece ouvir junto ao Lago di Garda ou nas costas da Sardenha. Na companhia certa, pode ter efeitos afrodisíacos...
A última cascata de guitarra materializa-se em Mirage. A toada é a mesma que ficou para trás. Acrescente-se uns lampejos que trazem à memória o mais pastoral de Mike Oldfield e poderíamos estar numa versão transalpina da cena de Canterbury.
Riccardo Zappa é visto hoje em dia como um dos maiores (e melhores) guitarristas clássicos de Itália. Infelizmente, criatividade e virtuosismo parece terem seguido caminhos separados e a sua música há muito que não deslumbra como nas primeiras obras. Celestion pode, assim, ser considerado um dos últimos estertores da música de superlativa qualidade produzida na Itália dos anos 70. Devia haver um museu para exibi-la e conservá-la.

17 de agosto de 2011

Jazz a Gosto



Já lá vão uns mesinhos, mas nunca é demais enaltecer a consagração da lusitana Clean Feed como uma das melhores editoras de jazz do planeta. Até porque, neste ano de 2011, cumpre-se o aniversário da primeira década da sua existência. A mutação da Clean Feed entre pequena editora e referência do jazz deveu-se muito à incorporação e divulgação de projectos internacionais no seu precioso catálogo. O encontro entre músicos nacionais e estrangeiros e a realização de eventos jazzísticos pelos caminhos de Portugal é outro dos alibis da editora para vir oferecendo excelentes discos desde The Implicate Order "At Seixal" até ao recente European Movement Jazz Orchestra Live in Coimbra.
Muito graças à Clean Feed, o novo jazz em Portugal está vivo e recomenda-se. Poucos foram os períodos em que residentes nas moradas do culto ou da vanguarda visitaram este cantinho à beira-mar plantado. Exploradores temerários como Peter Evans ou projectos promissores como Mostly Other People Do The Killing são passíveis de aparecer numa sala perto de si. É a regionalização do jazz, levada a cabo pela editora lisboeta. Um caso sério de qualidade e sucesso em tempos de depressão luso-generalizada. É aconselhável uma visita demorada à Trem Azul, possivelmente a melhor loja da capital dedicada ao jazz e que guarda todo o catálogo da Clean Feed. Esse catálogo pode ser consultado aqui. Algumas notas soltas sobre peças desse catálogo estão disponíveis aqui.

Liturgia Cósmica

First they came with bombs, now they come with synthesisers. Esta foi uma das expressões que os britânicos soltaram aquando do concerto dos Tangerine Dream na Catedral de Coventry. Em 1940, o sumptuoso monumento e grande parte da cidade foram destruídas pela aviação alemã. Agora, em 1975, os germânicos voltavam sob a forma de três misteriosos músicos que invadiam o local sagrado com o seu psicadelismo cósmico.
A filmagem do evento que ficou para a posteridade não mimetiza o concerto em si. Realizada magistralmente por Tony Palmer, consiste numa montagem de som e imagem, em que a música transcende o espectáculo e se torna uma cinestesia do espaço onde é tocada. O lendário concerto dos Tangerine Dream na Catedral de Coventry consegue ser visualmente esmagador, com as pedras, vitrais e tapeçarias a reflectirem a flutuante e espacial atmosfera do trio. Musicalmente, esta é também uma excelente oportunidade para apreciar os Tangerine Dream numa das suas melhores encarnações (Edgar Froese, Peter Baumann e Chris Franke) e num período fértil de criatividade (rodava por estes dias o belíssimo Ricochet). Documento histórico e irrepetível nestes moldes, permite um olhar abrangente aos primórdios da música electrónica e à forma arcaica mas romântica como era posta em prática. Permite igualmente a veneração dos mestres, conservados para sempre entre as quatro paredes do templo. O culto tornou-se infinito.



16 de agosto de 2011

Melofobia Moderna



Fear of Music: Why People Get Rothko But Don't Get Stockhausen é a mais recente provocação literária de David Stubbs. Este ensaísta e jornalista britânico, conhecido sobretudo pelos seus escritos nas revistas Wire e Uncut, assina agora um interessante livro sobre a dualidade de critérios e apreciações na arte moderna.
Stubbs parte da noção que obras de arte de grande abstraccionismo e experimentalismo em áreas como a pintura ou a escultura, são fonte de agrado e apreço para um número de pessoas muito elevado. Há quem pague fortunas por quadros de Mark Rothko e se perca embevecidamente a contemplar esculturas de Henry Moore. Porém, é bastante mais raro assistir ao genuíno êxtase de um ouvinte presenteado com uma obra de Karlheinz Stockhausen ou John Cage. A vanguarda e a audácia residem em todas elas, mas a recepção calorosa não se estende muitas vezes à música. Essencialmente, todas derivaram da mesmas correntes e beberam das mesmas influências (minimalismo, impressionismo, dadaísmo...), mas a música contemporânea mais arrojada continua a não atingir o mesmo estatuto. Será que os ouvidos são mais exigentes que os olhos? Será que o prazer sensitivo e a comunicação das artes variam de receptor para receptor? E a subjectividade? Reside em nós ou no objecto que admiramos, seja ele um quadro, uma fotografia ou uma peça de Xenakis?
Fear of Music é um livro que, mais que dar respostas, levanta questões. Pode parecer (e é) algo curto na vastidão da temática que procura esquadrinhar. Mas pode perfeitamente abrir caminho a mais investigações nesta matéria, principalmente ao nível da Psicologia. Quiçá não irei lá meter a colherada...

15 de agosto de 2011

Texas Us

Feel good music. Esta é a melhor definição para a sonoridade aprazível dos Sir Douglas Quintet. Activos durante mais de 30 anos, praticamente até à morte do líder Doug Sahm em 1999, estes texanos foram mestres no corte e costura de diversos estilos musicais americanos, na criação de patchworks sonoros onde blues, country, tejano e rock recebem tratamento VIP. Mendocino, segundo fôlego da banda lançado em 1969, é o exemplo perfeito do seu aveludado musical, sempre sedutor mas nunca boçal.
A música de Mendocino agarra-se com unhas e dentes às suas raízes, possui uma ruralidade vintage, um orgulhoso despretenciosismo. É música feita para nos dar prazer, especialmente em tempos de Verão. É seriamente aconselhável seguir as palavras de Shawn Sahm, filho de Doug Sahm, escritas propositadamente para a reedição do disco: "... kick back, get something cool to drink and prepare yourself for a Tex Mex trip like no other". A premissa cumpre-se logo no primeiro tema. Mendocino empurra-nos para uma qualquer festarola numa qualquer terreola da fronteira entre o México e as Américas. Órgão periclitante e roufenho, ritmo a direito e uma melodia esplendidamente desavergonhada. Canção para cantar alto, bater os pés na terra e esvaziar shots de tequila. A extroversão pulula pelo álbum, em temas tão espontâneos que parece terem sido compostos e gravados de uma assentada. She's about a Mover e I Wanna Be Your Mama Again fazem-nos sentir na sombra amena de um tesco, abrigados do sol impiedoso do deserto. And It Didn't Even Bring Me Down coloca mariachis a soar como um disco da Stax e a casa da country abre as janelas para deixar entrar uma lufada de ar fresco texano em If You Really Want Me to I'll Go.
Para além do clássico tema-título, as grandes composições do álbum são as que fluem lentamente, como um calmo entardecer. Eis o belíssimo I don't Want, o arrastamento dolente de At the Crossroads e a majestade sulista de Texas Me.  
Reeditado em 2002, Mendocino acrescentou mais seis temas à colheita original. Por entre as costumeiras versões alternativas, destacam-se as revelações The Homecoming e a sentimental Sunday Sunny Mill Valley Groove Day. Uma versão do filme Aquele Querido Mês de Agosto rodada no Texas teria certamente a banda-sonora assegurada pelos Sir Douglas Quintet. E isto é um elogio. Tex Mex style...

7 de agosto de 2011

San Francisco Serenade

Chet Powers escolheu o nome artístico Dino Valenti no princípio da sua carreira. Posteriormente, na banda que ajudou a fundar - os Quicksilver Messenger Service - passou a chamar-se Jesse Oris Farrow. Este estranho desdobramento de pseudónimos parece dever-se à divisão do músico entre vários projectos, à procura de uma identidade diferente em cada criação.
O único registo a solo deixado pelo californiano veio complicar um pouco mais a sua identificação. Um erro da editora fez com que o seu nome aprecesse como Dino Valente. 1968 foi o seu ano. Se o nome artístico parece remeter superficialmente para algo entre o mafioso e o intérprete de canções napolitanas numa trattoria de Little Italy, o conteúdo engana redondamente. Este é um disco de excepção, um tesouro perdido que poucos contemplaram e menos resgataram para o presente. Longe do rock psicadélico dos Quicksilver Messenger Service, Dino Valente é um disco orgulhosamente folk. Do mar e não da terra. A obra de um baladeiro com os poros entupidos de sol e sal, com a alma assombrada pela doce melancolia de um Verão que nunca dura. De um homem que viveu atrás das grades e de um pioneiro a quem chamaram the underground Bob Dylan...
As belíssimas e emotivas canções raramente transcendem a fronteira acústica. Arranjos de sopro e brisas de piano agitam My Friend e uma cascata orquestral tomba sobre a sublime Tomorrow. Uma bateria esparsa e gotas de cravo preenchem o não menos soberbo Time. De resto, erguem-se maioritariamente o trovador Dino e a sua guitarra, completando-se um ao outro, aconchegando-se mutuamente. E mais não é preciso, quando ruminações românticas e dolentes como Something New, Listen To Me ou New Wind Blowing param o tempo e salvam-nos, por momentos, do mundo real. À história de Me and My Uncle poderíamos chamar algo como outlaw folkChildren of the Sun guarda algum bucolismo psicadélico e Test vem terminar a edição original do álbum em expedição psicadélica explícita, mostrando que o baladeiro nunca deixou de ser um dos pais desta corrente.
Dino Valente é um disco com uma exposição bem mais reduzida que aquela que merece. É um exemplo perfeito do som de San Francisco nos finais dos anos 60, esse som pacífico e solarengo, em que uma acalmia algo triste se projecta no azul do céu. Reeditado em 2004, acrescentou Shame On You Babe e Now and Now Only aos dez temas originais e enfatizou uma vez mais o excelente escritor de canções que Chet Powers (o homem) foi. Justiça fosse feita (e um pouco menos de dedicação à marijuana...) e a sua obra-prima a solo seria falada na mesma dimensão que alguns discos de Tim Buckley, o seu génio composicional no mesmo patamar de Arthur Lee. Este é o único sítio na Internet onde existe um tributo ao músico. É rudimentar, mas funciona como local de culto a um artista que nunca passará disso.

6 de agosto de 2011

San Francisco Jam

É costume dizer-se que o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Os californianos Quicksilver Messenger Service surgiram para contrariar esse rebuscado dogma. Rezam as crónicas que Chet Powers (Dino Valenti no meio artístico), o mentor da banda, foi preso por posse de marijuana no dia que se seguiu ao seu primeiro ensaio. Isto aconteceu em 1965, três anos antes dos QSM editarem o seu álbum inaugural. Grupo rodado e habituado ao pó da estrada, chegou a 1968 sem o fundador, mas num misto de frescura e experiência, com uma sonoridade distintiva que os transformou num dos pilares do psicadelismo da West Coast.
As raízes clássicas e folk da banda provocam uma reacção química perfeita ao entrarem em contacto com o rock psicadélico do seu primeiro registo. Quicksilver Messenger Service é uma genial súmula do som californiano dos anos 60. Um som vagueante, ensolarado, música descapotável que circula devagar por imensas estradas desertas. Intercalam os temas mais directos (Light Your Shadows, Dino's Song) com psicadélicos sonambulismos ao sol (a longa jam ácida de The Fool e o excelso Gold and Silver). É nestas composições mais soltas que se revela o verdadeiro carácter e o real talento dos QSM. Essencialmente graças às guitarras em comunhão orgiástica, cujo prazer em dar música comunga do nosso prazer em recebê-la. Mas é a versão electrificada da canção folk Pride of Man que rouba o disco. Melhor que o original...
A tour de force das guitarras retorna em força em Happy Trails, provavelmente o momento definitivo do grupo. O disco divide-se num segmento gravado ao vivo e outro registado em estúdio. O primeiro é um imenso devaneio em torno do tema Who do you Love? do bluesman Bo Diddley. A desgarrada sem amarras, simbiótica, dos dois guitarristas (Gary Duncan e o genial John Cippolina) alucina-nos durante quase meia-hora. A parte gravada em estúdio gerou duas belíssimas criações, o blues rock intoxicado de Mona e o peso astral de Maiden of the Cancer Moon. Calvary, ao que consta, é uma épica jam surgida em plena viagem lisérgica. Soa como tal, na sua introspecção distorcida e no exotismo melódico. Para algo completamente diferente, o disco termina com uma revisitação ao tema da série televisiva Roy Rogers... Happy Trails acaba por ser a prova física de como os QSM eram uma banda de palco, um pouco como os seus contemporâneos Grateful Dead, com um nadinha menos de droga, com um nadinha mais de luz.
Em menos de um ano, o panorama altera-se. Após Happy Trails, o fulcral Gary Duncan abandona o grupo (diz-se que foi percorrer a América de mota...) e o segundo registo editado em 1969 é uma súbita encruzilhada na auto-estrada psicadélica. Shady Grove nunca será um mau disco. Mas coloca os QSM no roteiro das bandas mais convencionais numa altura em que poderiam ter expandido o seu som até ao fim do horizonte. A saída de Duncan parece tê-los deixado como um cão com três patas. Povoado por canções mais contidas no tempo e no espaço, Shady Grove tira do armário os esqueletos da folk e dos blues e cruza-os amiúde, como no tema-título e Holy Moly. Mas também separa a clara da gema, como em Flute Song ou Words can't Say. A estrela da companhia desta feita é o recém-recrutado Nicky Hopkins, pianista inglês e session man de gente como os Rolling Stones e Beatles. O seu estilo escorreito e sofisticado acrescenta ao disco um aroma de honky tonk erudito, especialmente no fabulosamente apurado Edward, The Mad Shirt Grinder.
Dois anos volvidos, Chet Powers (pergunto-me sempre se Cat Power foi aqui buscar o nome...) era já livre como um passarinho. Com um álbum de culto nos ombros, lançado em 1968 sob o pseudónimo Dino Valente, o carismático californiano volta à banda que viu parir. Para complicar ainda mais a sua identificação, adopta o alter ego Jesse Oris Farrow e torna-se o líder da matilha. A folk está no seu ADN e os QSM prosseguem rumo ao ocaso do psicadelismo na sua arte. Pelo menos o mais complexo e extravagante. Just For Love, de 1970, é um eterno disco de Verão. Para o dia e para a noite. Para o bem e para o mal. Produto genuíno da West Coast, ataca a nossa existência com uma deliciosa preguicite aguda. Implora uma praia escondida, uma noite com o mar por perto, um pôr-do-sol em cinemascope... Gary Duncan está igualmente de volta, mas o espectáculo pirotécnico das guitarras é ocultado pelo calor poroso. Just For Love, Pt. 1 e Fresh Air são os flagrantes delitos, o primeiro doce como néctar, o segundo o único sucesso da carreira dos QSM. Um eterno clássico. Gone Again e The Hat são convites irresistíveis ao torpor, ao pecado da gula - seja qual for o objecto de prazer... Cobra mostra um pouco da boogie band que subsiste nos Quicksilver e que sabe sempre a pouco.
O Verão do Amor da banda prolonga-se em What About Me. Igualmente editado em 1970, é um disco muito similar ao seu antecessor, acrescentando sopros em alguns dos temas. Continua a busca por sonoridades mais directas, o que se encontra logo no tema de abertura, manifesto capaz de aliviar uma otite. A aridez dos blues desponta em Local Color e Good Old Rock'n'Roll é exactamente o que anuncia. Mas o álbum acaba por ser mais um caldeirão de canções banhadas pelo sol da Califórnia. Baby Baby, Spindrifter e Call on Me são nomes talhados nas palmeiras, apetece quase vestir uma camisa às flores (uma que não seja muito foleira, vá...) e tomar uns mojitos a olhar o Pacífico. Long Haired Lady é uma típica balada ao estilo Dino Valenti e All In My Mind acrescenta uma tonalidade caribenha às cores quentes da paisagem. Just For Love e What About Me são conhecidos como os álbuns hawaianos dos QSM. Está tudo dito.
Em 1971, a trupe perde dois pesos-pesados: John Cippolina e Nicky Hopkins. Este desfalque e o idílio dos dois últimos discos fazem adivinhar um grupo à beira de cair na auto-indulgência ou a tocar para turistas nos bares de Honolulu. Mas a música é feita de surpresas e o novo registo da banda de Dino Valenti prova que ainda estão a uns valentes anos da reforma. Quicksilver é bastante sólido e está recheado de composições fortes. As infusões de folk sabem melhor que nunca, especialmente em Hope e no divinal Don't Cry for My Lady Love. I Found Love poderia ter saído das mãos do Carlos Santana dos inícios e o genial Fire Brothers é um milagre nesta fase da banda. Um dos melhores e mais vincadamente psicadélicos temas da sua história aparece ao sexto álbum. Que mais se pode pedir? O patrão da 4AD, Ivo Watts-Russell, que sabe muito bem o que faz, incluiu uma versão sombria e quase irreconhecível deste tema em Filigree & Shadow do projecto This Mortal Coil. The Truth fecha o álbum em modo rock descomprometido. Acima de tudo, sente-se o prazer dos músicos que, nesta altura do campeonato, conseguem um disco surpreeendente e que resume a carreira da banda em todas as suas facetas.
Foi sol de pouca dura. Em 1972, Comin' Thru aniquila as esperanças de uns Quicksilver renovados e perenes. À excepção de dois ou três temas (justiça seja feita, California State Correctional Facility Blues ainda entusiasma...), o disco é uma desilusão perante o que tinha sido alcançado há apenas um ano. Para castigo, não ponho aqui a capa.
A banda volta à carga em 1975 e com o line-up original. Desta vez, parte do hype é verdadeiro e os QSM  podem orgulhar-se do que apresentam. I Heard You Singing é boa, Gypsy Lights é melhor, Cowboy on the Run é a melhor de todas. Witches Moon e Bittersweet Love são prazenteiros regressos ao passado, o que constitui o único problema do álbum Solid Silver. Oito anos antes teria sido uma bomba, em 1975 é apenas um estalinho. Foram as melhoras da morte dos Quicksilver Messenger Service. A loja fechou e reabriu em 1986 pela mão de Gary Duncan. Mais valia ter sido demolida. O grupo que existe hoje é apenas um pálido retrato do passado. Uma banda de covers de si própria. Mas, quando chega o Verão, os fantasmas do passado de um dos melhores colectivos de sempre a sair de San Francisco, ícones incontornáveis do psicadelismo, chegam para nos atormentar de forma benfazeja. High Spirits...

30 de julho de 2011

Kosmische Kosmetik XXVII

Conrad Schnitzler tem 74 anos de idade e quase o dobro de discos editados. Este alemão de Düsseldorf, desconhecido para muitos, é um dos maiores pioneiros da música electrónica. Membro da primeira formação dos Tangerine Dream e co-fundador dos Kluster (que trocariam o K pelo C após a sua saída), Schnitzler foi igualmente o mentor do breve projecto Eruption, que duraria o tempo suficiente para gerar um único álbum. Enquanto os Eruption seriam uma alavanca para o movimento krautrock, esse único registo - homónimo - apenas veria a luz do dia em 2006, mais de 30 anos após a sua criação.
Muito viveu e produziu Conrad Schnitzler entretanto. A sua quase infinita discografia necessita de uma hercúlea dedicação para ser desbravada por inteiro. A trajectória do músico parece ser circular desde os primeiros tempos da sua carreira a solo. Começando por assentar em edições exclusivamente em cassette, até aos dias de hoje, em que perduram as concepções caseiras e disseminadas em CD-R, Herr Schnitzler conviveu pouco tempo com a visibilidade mediática. Talvez o excelente Ballet Statique, de 1978, seja visto hoje como a sua obra mais abrangente e influente, um dos melhores discos de electrónica já criados e uma bússola para muitos artífices e seguidores do clássico, frio e minimal som germânico. Cinco anos antes, porém, surgia outro mastodonte robótico pela mão do catedrático. Longe, muito longe, das atmosferas mais acessíveis presentes nos seus discos de finais de 70 e princípios de 80, a aventura chama-se Zug.
A história de Zug escreve-se em dois temas apenas, ou, como nestes tempos havia dois lados nas construções musicais, numa peça partida em dois: Spur e Rhythmus. Causa e consequência. Desde o início somos colocados numa locomotiva desgovernada, que avança irredutivelmente, mas sem nunca sair dos carris. Uma vertigem sonora, que não pára em estações nem apeadeiros e que tanto nos pede para mover o corpo às suas investidas, como nos titila a massa encefálica para continuar a ouvir, para saber onde a viagem nos leva. O ritmo pica como esporas, impedindo a atenção de ser desviada, mesmo sendo minimal e repetitivo. Lá atrás sucedem-se sibilares mecânicos, metálicos, metamorfoses subtis que acrescentam tonalidades cinzentas ao preto e branco dominante. Em Trans-Europe Express dos Kraftwerk, sentimo-nos igualmente transportados, mas como passageiros enamorados pelo Velho Continente. Zug é mais actual, parece arrastar-nos para uma fuga, não nos deixa olhar a paisagem, não nos deixa reter o momento. É movimento puro, o que acontecerá daqui a um minuto poderá ser exactamente o que aconteceu há um minuto atrás. Abruptamente, como se entrasse num túnel perpétuo, o movimento desvanece-se. Passaram perto de 40 minutos. De quê?
Em 2010, o disco foi reeditado tendo como base reconstruções da peça original. Provavelmente para dar continuidade, um fim, ou um sentido a uma obra tão vaga e misteriosa mas que ajudou a construir o futuro. O primeiro disco de trance music de sempre? O motor de arranque do techno inteligente? Nada disso, mas muito mais que isso...